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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Uma gota de memória...

Nascemos no meio de lembranças esfumadas e esparsas que não passam de pequeninas gotas de água desejosas em se unirem para dar origem ao fino fio de água da memória que, com o tempo, acaba por encher e correr o vale tortuoso da existência, umas vezes com fúria, outras parando para brincar e refrescar.
Os rios não se lembram do local onde nascem, mas recordam com saudade as primeiras gotas que, incessantemente, alimentam a origem da sua vida. Nós também não nos recordamos do momento em que nascemos, mas lembramo-nos das primeiras gotas da memória.
Recordo uma dessas gotas. Numa silenciosa manhã de sol, sentado no chão, olhava para canas finas cortadas ao meio, papel de seda verde-claro e amarelo e cordel, muito cordel ao redor de um pau. Via como se construía um papagaio. Eu já sabia o que era um papagaio. Tinha visto um num jardim de um senhor e que dizia algumas palavras. Era bonito, e eu sempre quis ouvir um pássaro que falasse. Os outros não falavam. Quando disseram que me iam dar um papagaio, julguei que fosse um papagaio dos que falavam. Perguntei o que estavam a fazer. – Um papagaio! Olhei e fiquei atento a ver como se fazia um papagaio. Afinal é possível fazer papagaios.
O papel de seda era verde e amarelo. Esperei que saísse dali um papagaio a falar. – Está pronto! – Mas onde está o papagaio? – Aqui! Não vês? – Não. – Isto chama-se um papagaio. – E voa? – Voa. – E fala? – Fala? Não! – Porquê é que não fala? Os papagaios falam. Foi então que aprendi que havia dois tipos de papagaios, os de papel de seda e os de carne e osso. Eu preferia estes últimos, mas tive que contentar-me com o primeiro. – E agora? – Agora vamos para a rua. Começou a correr e o papagaio levantou voo, e à medida que dava cordel mais alto voava. Estampado no céu azul eu via o meu papagaio verde e amarelo a subir, a subir, com uma cauda feita do mesmo cordel com laçarotes amarelos, verdes e vermelhos. Fiquei de boca aberta. Também quis lançar o papagaio, mas não consegui. Arrastava-o pela rua. Não insisti, porque não queria estragá-lo. – Contigo, voa alto. – Pois voa. E se houver vento, então, ainda voa mais alto. – Até ao céu? – Quase. Mas para isso temos que ir para um ponto alto, onde haja vento. No dia seguinte, de manhã, fomos para um pinhal que ficava um pouco longe. Colocaram um cobertor castanho com riscas amarelas e vermelhas entre os pinheiros numa zona onde não havia mato. Comi sobre o cobertor e descansei depois. Não dormi, porque não podia dormir. Queria ver o meu papagaio a voar alto, muito alto, mais alto do que os pinheiros, a tocar o céu. Lançaram o papagaio. Voou alto, passando acima das copas dos pinheiros e eucaliptos. Olhava para cima e via o meu papagaio a ficar cada vez mais pequenino. Perguntei: - O meu papagaio voa mais alto do que o outro que está no jardim? – Voa. Fiquei satisfeito. O meu papagaio não falava mas voava mais alto. Depois começou a baixar, até que bateu num ramo de um pinheiro. Rasgado, caiu aos trambolhões. Corri e peguei nele. Fiquei muito triste. Estava estragado. Ajudei a levá-lo para casa de mão dada, porque era quase da minha estatura. Em casa, chorei. As canas estavam partidas. Tentaram tranquilizar-me, dizendo que me faziam um novo. Não quis. Eu queria aquele. Não queria outro, porque foi o primeiro papagaio que eu vi fazer sem saber o que era um papagaio de papel. Agora, se visse a fazer outro eu já sabia que iria aparecer um papagaio de papel. E qual é a piada de ver fazer uma coisa que eu já conhecia? Pensei. O melhor era partir para outras gotas de memória que eu ainda não tinha...
A partir de hoje vou no seu encalço. Talvez consiga as recuperar. Assim espero. Até um dia...

15 comentários:

Suzana Toscano disse...

Caro massano Cardoso, não há amor como o primeiro, lá diz o ditado, e esse papagaio verde e amarelo marcou o seu devido lugar na sua memória com toda a justiça, se voava assim tão alto...!E quem o levava a si pela mão, para lhe mostrar como se lança um papagaio, também devia ter a memória de como é fácil deslumbrar uma criança e marcar as suas recordações.E agora aqui está o meu amigo a puxar-nos pelas boas memórias...

Catarina disse...

Enquanto lia o seu lindo texto, só me recordava e na minha mente apenas passavam cenas de um livro que li há uns 2 a 3 anos: “The Kite Runner” escrito por Khaled Hosseini, passado em Cabul. Memória a curto prazo!!! Só depois de terminar (antevendo alguma palavra ou período ou mesmo parágrafo que me indicasse um desfecho – digamos – de conteúdo político) é que me recordei que também eu andei atrás ou à frente de um desses papagaios .... mas na praia. E foi agradável recordar alguns momentos de criança.

Só que... se houve, no seu texto, alguma nuance política... não me apercebi. Haverá?

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Que bonito texto!
Ao longo da sua leitura senti-me como que correndo ao lado do menino que voava de alegria com o seu papagaio encantado. No fim da leitura, logo imaginei alguns episódios da minha infância alegre que me esqueço de recordar. Parece que às vezes nos falta o tempo ou o espaço para virem à memória os papagaios de papel de seda...

António Transtagano disse...

Com laivos de sensibilizante tristeza, o Doutor Massano Cardoso trouxe-nos aqui a história do seu papagaio: "Quando olhava para cima, o seu papagaio ficava mais pequeno(...)!

Moral da história: Olhar sempre para baixo para que o papagaio não mingue! Quem sabe se um dia não se levantará para voos mais altos?
E se não se levantar, resta sempre a memória dele, embrulhado em papel de seda...

Massano Cardoso disse...

Não Catarina, não há nuance política e quando há vem, normalmente, por arrasto, na maioria dos casos.

Bartolomeu disse...

Raras vão sendo as gotas
que pingam d'esse telhado
Mas mesmo raras, são doutas
e tornam o sol mais doirado

Riem-se os olhos ao lê-las
quando pingam n'este jardim
Enternecem-nos porque belas
Alegram-nos porque, enfim

Enfim, nos fazem saber
Que O Professor não esqueceu
E volta a aparecer
Neste canto que é seu
Onde todos o querem ler
Mas nenhum outro, mais que eu!!!

;))
Agradeço-lhe o ensejo de mais este extraordinário texto, caro Professor Massano Cardoso.

jotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso:

À medida que vou “deglutindo” esta bonita história que contém um pequeníssimo indício de uma infância feliz, assaltam-me à memória na forma de pesadelo, as crianças escravas do Gana, vendidas pelos próprios pais com a idade de três anos, por trinta euros... Como o mundo seria melhor se todas as crianças pudessem fazer voar bem alto um papagaio de papel de seda, amarelo e verde ! …

Suzana Toscano disse...

Também vi essa reportagem, caro jotac, era muito impressionante e é incrível a coragem e a tenacidade daqueles poucos que se dedicam a resgatar uma a uma as crianças escravas.

Sargento do Templo disse...

O mundo poético pode alimentar alguns espiritos - talvez aqueles mais debilitados pela vida.

Se passasse-mos do mundo da poética para um mundo com os pés bem assentes na terra, chegaríamos lá mais depressa, concerteza.

Sargento do Templo disse...

O mundo poético pode alimentar alguns espiritos - talvez aqueles mais debilitados pela vida.

Se passasse-mos do mundo da poética para um mundo com os pés bem assentes na terra, chegaríamos lá mais depressa, concerteza.

Suzana Toscano disse...

O caro Bartolomeu é um poeta e tanto, mas que belo poema lhe inspirou este papagaio de seda a voar e as memórias do Prof. Massano. Não sei fazer poemas mas subscrevo o seu sem reservas!

Bartolomeu disse...

Agradeço-lhe o elogio, cara Drª. Suzana Toscano. Talvez não seja na alma dos poetas que reside a sensibilidade para cantar a beleza das mãos que seguram o cordel do papagaio que se eleva nos ares. Mas sim nos sentidos daqueles que lhe conseguem adivinhar a forma através da escrita.
Cavaleiro do Templo não é somente aquele que empunha a espada, é sobretudo aquele que oferece o peito em defesa da justiça e do humanismo.

Sargento do Templo disse...

É bem verdade, caro amigo. A caneta não é bem uma espada, mas mais um florete, e com poucas gramas de tinta declara-se uma qualquer guerra.

Mas, são os cavaleiros que, de espada ao alto, vão para a batalha. O escudo apara e desvia os golpes, mas também protege os pobres e todos os excluídos.

O mundo está - ou sempre foi! - cruel e os desprotegidos precisam de uma caneta mais pesada que o florete para os proteger. O escudo tem de ter um sinal inequívoco que transmita alentos de esperança a todos os infelizes deste mundo.

Bartolomeu disse...

Concordo inteiramente com o princípio, caro Cavaleiro do Templo!
A nobreza que sustenta a inequívoca valentia do cruzado, advem-lhe da alma e cimenta-se na justeza dos princípios.
Nunca, um defensor dos fracos e oprimidos, dirige o golpe da sua espada ao peito do inocente, com o fim de atingir o impio.

Unknown disse...

interessante