Todos os povos têm histórias ou provérbios a propósito das suas características e cultura. Uma das histórias que se conta dos portugueses não é nada amável e a primeira vez que a ouvi fiquei escandalizada, é lá possível! isso não é nada assim, protestei a quem ma contou. No entanto, o tempo e a experiência têm-me feito lembrar várias vezes essa anedota cruel. Diz então a historieta que um português encontrou uma caixa da qual saíu um mago que aí se encontrava encarcerado. Grato pela libertação, a criatura logo prometeu ao português que lhe daria o que quer que fosse que ele lhe pedisse mas com uma condição: o seu vizinho teria o mesmo em dobro. O felizardo pensou, pensou e não havia meio de se decidir, o meu vizinho terá o dobro do que eu tiver? perguntava cheio de dúvidas. Sim, disse o mago, precisamente o dobro do que tu escolheres para ti. Foi então que o português suspirou e decidiu: tira-me um olho!
Vem isto a propósito das medidas de austeridade que se anunciam e que pedem mais sacrifícios aos reformados que recebem as reformas pela Caixa Geral de Aposentações. O grande debate não é se faz ou não sentido o que se pede, em quanto se pede, etc., não, o grande debate é "quem é que não tem", de preferência em dobro, tais sacrifícios, se os políticos, se os juízes, se os mais ou menos velhos, ou ricos, se este, se aqueloutro. Esta característica dos portugueses torna tudo muito fácil, é só fazer com que cada decisão pareça ir deixar de fora uns quantos, seja lá do que for, e tudo se concentra nas excepções sem perder tempo a discutir o principal, e assim tudo se torna até bastante aceitável quando afinal lá vier a tal "justiça" e o vizinho receber em dobro aquilo que só por si pareceria inaceitável. O mesmo se diga quando acontece precisamente o contrário ou seja, quando "os outros" são castigados e os próprios se safam, aí, se estiverem fora do alcance, já lhes parece tudo evidente e mesmo muito bem pensado. E, como diria o Gil Vicente, "assim se fazem as cousas", por alguma razão existe esta historieta e que não será só especialidade nossa, se olharmos o que acontece por essa Europa fora em relação aos países em dificuldades, também não é difícil surpreender "vizinhos" a exigir que o do lado sofra o dobro, como se isso lhes aliviasse o próprio sofrimento. E não me venham dizer que se trata de justiça, antes de se ver se há justiça relativa é muito mais importante saber se o que se pede, é, em si mesmo justo ou injusto, a questão relativa só deveria vir depois.
13 comentários:
Cara Suzana,
Não conhecia essa "estória" mas conhecendo os portugueses parece-me bem apanhada :)
Agora, no caso que agora está muito na berra (os cortes nas pensões e o tratamento diferenciado dos diplomatas, militares e juízes), se é certo que a indexação das pensões destes às remunerações do pessoal no ativo, torna algo discutível a aplicação "tout-court" dos cortes anunciados, não seria antes o momento para acabar com aquela indexação que parece, ela sim, geradora de inequidades?
Qual tem sido a evolução das Pensões face às Remunerações? E, objectivamente, falamos de profissões com algumas das maiores remunerações na Administração Pública.
Longe de mim defender "os ricos que paguem a crise". Mas o facto de se perpetuarem tratamentos diferenciados que não se justificam, também "ajuda" ao mau hábito de "olhar para a galinha do vizinho".
Cara Suzana, não é a mesma coisa. Ninguém está a discutir se o corte para juízes et al. deve ser o dobro ou não. Discute-se porque é que é zero, depois de terem sido juízes a provocarem o dobro no corte dos vizinhos. Sim, porque o português não é só invejoso, arranja maneira de meter os invejosos a interpretar a lei fundamental a seu belo prazer. Certamente, a Suzana não está a falar do dia em que os invejosos que estão no tribunal constitucional emitiram um acordão a dizer que o governo deveria cortar em mais coisas dos vizinhos e não nas deles, está?
Isto sem falar na utilidade real de tais trabalhadores nos dias de hoje que é zero. tirando nos dias em que dizem que trabalhar bêbado é bom, claro.
E pronto, quer no caso do meu amigo Jorge Lúcio quer no do caro Tonibler, a dúvida fica-se pelas "excepções". Imaginando que não havia diferenciação alguma e que todos os subscritores da CGA são iguaizinhos como gotas de água, o tema torna-se neutro? Essa é a questão, o que surpreende, insisto, é a facilidade com que as atenções se desviam do objecto principal e esta é sem dúvida uma importante peça de qualquer estratégia política que antecipe as dificuldades. Dei apenas um exemplo, mas há muitos outros, longínquos ou mais recentes.
Cara Suzana,
Sabe que no momento presente, sou um grande adepto do "Orçamento de Base Zero", isto é nem um euro estaria justificado porque "sempre se fez assim". Cortar 10% a eito em todos os items (ou em todas as reformas...), apenas demonstra preguiça intelectual e falta de vontade de identificar e resolver os problemas fundamentais.
Transferindo para as Pensões, penso que talvez seja o momento de as tratarmos todas do mesmo modo. O multiplicar de excepções tornou o sistema o mais injusto e ingovernável possível, porque todos encontramos sempre algum motivo que nos torna diferentes e especiais.
Li recentemente no "The Economist", que não é certamente um oráculo de socialistas, um "apelo" a que fosem eliminados todas as regras especiais no Tax Code dos EUA. E o objectivo era exactamente acabar com os privilégios absurdos que acabavam por beneficiar os que menos precisavam (ou os que tinham os melhores advogados...), acreditando que com a mesma receita fiscal mais bem redistribuída, haveria disponibilidade para atender aos que verdadeiramente necessitavam.
Até posso puxar "a brasa à minha sardinha": não me queixo dos meus rendimentos, mas as minhas excepções, que eram os juros do empréstimo da casa, as despesas com educação dos meus Filhos, as despesas com Saúde e os PPRs, já foram eliminadas.
Sem uma lógica de distribuição equitativa (não igualitária!) dos esforços, algum político acreditará mesmo que conseguirá convencer alguém a deixar de olhar para o vizinho?
Cara Suzana, a questão da CGA já é um problema em si mesmo. Porque não são todos iguais neste cenário. Há quem seja patrão e quem seja empregado. E os empregados, são empregados de uma entidade que faliu e se quer(queria, acho que já se está tudo nas tintas) recuperar. O que faz da questão mais folclórica é que os mais bem pagos dos empregados da entidade falida são exactamente aqueles que usaram o monopólio da violência para obrigar os patrões pagar mais para manter seus salários. É apenas mais uma daquelas coisas que faz do estado português uma realidade a curto prazo, mas está lá para nos lembrar todos os dias porque é que o vamos deixar morrer com alegria...
Na realidade, o tema é neutro sim, porque isto vai durar mais uns meses até à solução definitiva.
Caro Jorge Lúcio, se já é tão difícil ir corrigindo alguns excessos ao mesmo tempo que se reduzem funções desnecessárias e se tem que atender a novas necessidades, imagine o que seria questionar tudo ao mesmo tempo, reavaliar, encontrar a justa medida e então andar para a frente como se tivéssemos aplainado o caminho depois de uma longa paragem. Seria uma revolução sem dúvida, mas quem pode assegurar os bons resultados? Sou reformista, acredito que as coisas se transformam, náo confio em processos de ruptura que não dão possibilidades de se ir corrigindo conforme os resultados.
Quanto às pensões, o pressuposto que dá como certo de ingovernabilidade e de imjustiça está longe de estar demonstrado. Foram modelos diferentes que presidiram ã formação de sistemas diferentes, com universos distintos e objectivos também diferenciados. Podemos hoje discutir se devem ou não manter-se e isso mesmo levou a que desde há uns anos a convergência se iniciou e tem vindo a acentuar-se, desde 2006 que a CGA está fechada a novos subscritores, o que significa que os descontos dos mais novos alimentam o sistema geral enquanto as despesas ficaram do lado da Caixa. É evidente que se não tivermos isto em conta e olharmos só a trajectória da despesa não podemos tirar conclusões certas sobre o que está a acontecer. Quanto ao sistema fiscal, ele abrange todas as pessoas, pelo que também os reformados viram do mesmo modo reduzidos os seus benefícios fiscais.
Finalmente, não conheço conceito mais variável do que o da "equidade", digamos que é um desejável processo de aproximações sucessivas mas o que é equitativo nos conceitos de hoje podia ser absurdo há uns anos, ou noutros contextos e culturas. Basta mudar de país para ver como cada povo avalia a equidade e o reflecte no seu modo de organização social e até nos seus modos de sobrevivência. São as alterações bruscas e sobretudo muito pouco duradouras, tantas vezes demagógicas, ao conceito de equidade que levam a grandes injustiças e à perda da tão proclamada confiança. Por isso cada decisão deve ser devidamente escrutinada nos seus fundamentos e nos seus resultados. E o facto de serem mais ou menos os penalizados não retira nada à natureza das coisas, apenas as torna mais ou menos abrangentes. Desculpe o tamanho da resposta, mas o seu comentário merecia este esforço!
Caro Tonibler, mesmo que dê tudo como perdido, como parece ser o que pensa, ainda assim não é indiferente escolhermos o caminho, ao menos não devemos desistir de acreditar que vivíamos numa civlização orgulhosa dos seus princípios básicos mesmo em situação desesperada.
Cara Suzana,
Por que não se reformula o sistema tomando como base um princípio moralmente inatacável: o de que todas as pensões geridas pelo Estado, sem excepções, sejam calculadas em função de toda a carreira contributiva?
Por mais argumentos que sejam arremessados contra o princípio da equidade fiscal há um facto que ninguém de boa fé pode contestar: o de que não devem os de menores rendimentos pagar mais impostos que os de maiores rendimentos.
Quando essa inversão ocorre, e ocorre persistentemente em Portugal, há flagrante iniquidade fiscal porque, também neste caso, os cidadãos não são considerados iguais perante a lei fundamental do país.
E nada disto tem a mínima vizinhança com a história do olho do vizinho.
Sem caminho, cara Suzana? O caminho está traçado há mais de 10 anos, chama-se integração europeia, a Europa dos cidadãos, o grande espaço europeu, aquilo que lhe quiser chamar que, como as contas mostram, parece não ser compatível com a existência de um nível de estado intermédio em Lisboa. O esforço feito para o manter parece ser (é, o tempo do "parece" acabou) inútil dado que os principais interessados não estão para aí virados. Pelo contrário, este episódio dos juízes e cia lda. mostra que enquanto o país caminha para a Europa, o estado português mantém-se na sua senda africana.
Sabia que, nos inicio dos anos 80, com o Ministro Veiga Simao e por sua expressa determinacao, o orcamento de base zero era aplicado no entao Ministerio da Industria e Energia? E que foi desenvolvido um sistema automatico de gestao da administracao (saga), que dava toda a informacao sobre os funcionarios ali em servico, como carreiras, categorias, etc.? Pena que tenham deitado ao lixo o imenso trabalho ali realizado para que houvesse racionalidade na despesa e informacao actualizada dos recursos humanos existentes...
Caro Rui Fonseca e porque é que as pensões "geridas pelo Estado" são moralmente atacáveis? Qual é a imoralidade assim táo gritante que torna a "gestáo" impossível? Esse é o ponto. Lembro que até há bem pouco tempo se considerou que o sistema de pensões precisava de reforma não com base em juízos de valor moral mas com base numa perspectiva de longo prazo por razões demográfica e era TODO o sistema que estava em causa e não apenas um grupo, o qual estava já em processo de convergência. A razão da pretensa moralidade é recente e surge como um dado adquirido que é completamente iludido, a meu ver, com o tal olho do vizinho.
Caro Tonibler, depois de temos destruído o nosso Estado a golpes cegos veremos que os outros países da Europa de que fala não terão tido a veleidade de fazer o mesmo aos seus respectivos Estados com os quais contam para progredir. Veremos se é assim ou não, mas nessa altura não faltarão as culpas, as desculpas e os remendos. Podemos fazer muito melhor, é importante fazé-lo, não tenho qualquer dúvida, mas por isso mesmo não vamos lá com ajustes de contas inventadas ou com intrigas de ocasião que não nos deixam tomar consciência do que está realmente em causa ou seja, que pode não contribuir em nada para a tal direcção europeia de que fala.
Cara MM, a quantidade de boas práticas e de projectos válidos que foram abandonados num piscar de olhos! E a quantidade de vezes que se fala em grandes novidades sem sequer se olhar para o que já estava a ser feito e é desperdiçado! Mas esses contas não dão somas nas receitas e nas despesas...de cada ano.
Cara Suzana, só vale a pena manter algo que seja nosso. A republica portuguesa não é nossa. É "deles". Até podem arranjar as excepções todas que quiserem, espero é que tenham sítio para ir porque em Portugal a república portuguesa não vai ficar. Quem sabe se um país irmão mais habituado a estes regimes de excepção, como Angola, não vai gostar de receber uma república centenária?
Ora ora caro Tonibler, nós até já temos quase 900 anos e ainda aqui estamos ;)
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