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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Amor com amor se paga

Às vezes somos surpreendidos com situações que nos tornam evidentes diferenças culturais de que nem suspeitamos e que criam momentos embaraçosos.
Há dias, passou-me à porta o velhote surdo-quase-mudo que mora na aldeia logo a seguir ao sítio onde temos a casa de férias e fins de semana, pára sempre a espreitar se nos vê e faz grandes cumprimentos com o seu sorriso desdentado. porque costumo dar-lhe boleia para Mafra quando o encontro pelo caminho. Dessa vez ficou à espera que eu fosse ter com ele, não se limitou a acenar com grandes gestos e seguir no seu passo arrastado mas ainda firme, e afinal queria perguntar-me se eu ia ficar por ali uns dias e se queria que ele me trouxesse uns ovos das galinhas que cria lá no seu quintal. Passou lá no dia seguinte, com duas dúzias de ovos e eu insisti para que me dissesse quanto era. Resistiu, meio envergonhado, entaramelou que não, que eu lhe dava boleia para Mafra, ele costuma vender alguns mas não era o caso, metade do que ele diz não se percebe, enfim, o certo é que acabei por ir buscar as moedas e pagar-lhe os ovos.
Hoje lá ia ele a passar à porta quando íamos a sair para a praia, ia muito bem arranjado e disse, sempre com muitos gestos em vez de palavras, que ia para uma festa no Sobreiro, uma distância enorme para um lisboeta viciado no carrinho. Oferecemos boleia, como de costume, abanou a cabeça desanimado, que não, que não era o nosso caminho, mas depois lá entrou e fomos mesmo deixá-lo ao seu destino, para nós foi um desvio de poucos minutos. Quando abriu a porta para sair hesitou, riu-se meio trocista e disse na sua linguagem enrolada: -“Agora se calhar devia perguntar quanto é que devo pela boleia, já que teimou em pagar-me os ovos!”
Fiquei envergonhada, a pensar que ainda há códigos de comportamento que subsistem e que nós quase nos esquecemos, com esta mania de que tudo tem um preço e se mede em dinheiro. Sem querer, ofendi o homem, eu é que fui surda ao seu gesto simples de gratidão, eliminando a possibilidade de ele me retribuir com o que tinha. Espero que ele me dê outra oportunidade de aprender a linguagem da humildade.

8 comentários:

PA disse...

a susana tinha o carro.
o senhor tinha os ovos.

cada um dá o que tem.

Cara Susana, um dia li esta frase:

- Não vales pelo que tens. Vales pelo que dás.


Adorei este seu momento de reflexão.

Penso que são ambos muito generosos. A susana e este senhor.

Haverá muitas oportunidades de tornar a fazer bem.

Há sempre Susana !!!

abraço

Bartolomeu disse...

Enternecedor este seu singelo post, cara Suzana.
É como diz: as coisas mais simples deste mundo, são aquelas que nos oferecem os melhores momentos.
Não se sinta inibida por não ter despido (ainda) a farda de citadina, não pode esquer-se que aquele seu vizinho vive na terra, da terra, com a terra, certamente desde que nasceu, portanto leva-lhe alguma vantagem. Digo alguma e não toda, porque afinal a Suzana demonstrou ser uma aluna atenta e sobretudo de sentidos bem afinados. Sabes Suzana? Essa qualidade, assiste somente aqueles que ainda mantêm o coração puro, tal como o do velhote-vizinho-quase-surdo-quase-mudo.
(Não leve a mal o atrevimento cara Suzana, tentei somente recriar um pouco a figura de estilo que são os nossos vizinhos campestres, que eu adoro).
;)

jotaC disse...

Cara Dra. Suzana Toscano:
Oferecer uns ovinhos são gestos simples, já muito antigos, que as pessoas da província costumam (ou costumavam!?) ter para com os recém chegadas ao seu meio, mas quase sempre de um estrato social mais elevado… Era assim no Norte. É um gesto simpático que cai sempre bem.
Mas, mais simpático do que o gesto do seu conhecido é o seu, por dar-lhe boleia sem se preocupar que as botas lhe sujem os tapetes do carro, ou o eventual odor característico das pessoas que trabalham no campo, fique a pairar durante algum tempo no ar…
Sem dúvida, um gesto muito bonito!

Ramsés II disse...

A vida de cidade - com a impessoalidade que isso nos traz - tem destas coisas!

Suzana Toscano disse...

Pois é, caro José, é mesmo esse hábito - ou treino - da impessoalidade que nos vai criando uma barreira invisível.
Cara Pezinhos, não sei se é generosidade, eu acho que é simpatia, um pouco mais que cordialidade mas menos que a amizade, que já é uma relação pessoal.Nas cidades quase que não temos oportunidade para a cordialidade,há sempre uma distância ou uma formalidade que reduz tudo (e já não é nada mau quando isso acontece) às regras de boa educação, quase impessoais.
Caro Bartolomeu, é verdade que eu estou em desvantagem porque eu é que fui lá parar, uma forasteira da cidade a querer beneficiar daquele mundo tão especial, cabe-me a mim aprender as regras, claro, e lá vou tentando..`.
Caro Jotac, se me tem dito isso dos ovos a tempo, tinha-me evitado este desastre!:)

jotaC disse...

Nada disso...desastre era se a cesta dos ovinhos tivesse caído!...
:))

Margarida Corrêa de Aguiar disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
A humildade das pessoas da terra, como bem apelidou o nosso Caro Bartolomeu, revela uma sabedoria de vida muito especial.
Às vezes faz-nos confusão, nós que não somos propriamente da terra, como é que pessoas que de acordo com nos nossos padrões levam uma vida dura e difícil são tão desprendidas e afectivas, tão humildes e bondosas. Às vezes ficamos mesmo sem saber como reagir. Uns e outros fazemos diferente, mas uns e outros fazemos bem e de boa fé. É o que importa. No final entendemo-nos bem, nós e os outros que temos bom íntimo e que nos preocupamos com o bem-estar de uns e de outros.