Tem dado que falar a história da “falsificação” da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, quando utilizou uma menina bonita para aparecer e outra, com os dentinhos tortos, atrás da cortina a cantar. De acordo com o coro de protestos indignados que ainda se fazem ouvir, isto foi uma “encenação”, uma inadmissível batota que ameça perpetuar uma mancha terrível sobre o grandioso espectáculo.
Percebo que o regime chinês não desperte simpatias dispostas a tolerar quaisquer fraquezas e que custe um bocado a engolir a dimensão e perfeição do espectáculo mas, francamente, não consigo perceber a ira que este episódio gerou, como se se tratasse da reedição, em formato séc. XXI, do drama de Cyrano de Bergerac. A imprensa, ávida de provar a impossibilidade da China nos impressionar, quis espicaçar-nos com a descoberta de “um drama humano”, ainda por cima de uma criança, a condenação à inexistência de quem é feio, a desumanidade da exigência da perfeição, enfim, a marginalização e a injustiça, associada ao torpe aproveitamento, à socapa, das qualidades aproveitáveis!
Ora, o que me parece é que estamos perante um exercício de pura hipocrisia e de arrogância moral que tanto irrita outras civilizações. O objectivo era apresentar um espectáculo irrepreensível, perfeito, de acordo com os padrões de beleza e perfeição que vigoram na organização. Um espectáculo colectivo, que envolveu milhares e milhares de figurantes e artistas, não era propriamente um desfile de estrelas ou um concurso de talentos. O número em que entraram as duas meninas – uma gravou a canção, outra deslizou nos ares como uma pequena fada - , não era diferente ou seja, não se destinava a dar oportunidade de glórias individuais, era parte do todo. E, como o todo, recolheu o contributo dos melhores para que parecesse uma peça única.Queriam uma imagem bela e uma voz celestial e, sendo certo que a natureza raramente junta todos os expoentes numa só criatura, juntaram duas, escolhendo o que cada uma podia dar: uma apareceu, a outra cantou, formando uma dupla que atingiu plenamente o objectivo, agradar sem reserva.
Não houve “encenação”, no sentido de burla que motiva a indignação, mas uma coreografia admitiu a ilusão de que quem dançava era quem cantava. Li algures que foi uma decisão de última hora, que a menina cantora já era crescida demais para fazer o número visual, seja como for não creio que se justifique tanta indignação nem tantos processos de intenção.
Podemos, claro, contestar o critério, dizer que é uma indecência não deixar a cantora dar a cara só porque é menos bonita, mas que grande injustiça. O que se quer fazer crer é que nós, no ocidente, nunca faríamos isso, se a menina tem a voz que queremos, pois bem, temos que a aceitar tal e qual, senão é injusto, nunca sacrificaríamos a glória e a felicidade pessoal aos objectivos da organização. Ora, não estou nada certa de que os nossos valores, neste aspecto, sejam assim tão irrepreensíveis, basta dar uma olhadela sobre as reportagens que alertam para a discriminação dos gordos e ao modo como são preteridos nos empregos, ainda que sejam melhores para as funções, para sermos mais prudentes a atirar pedradas. E não estamos só a falar de coreografias que são, em si mesmas, criadoras de ilusão. No Ocidente o aspecto conta, e muito, arranjamos é maneiras mais discretas de não sermos “apanhados”, geralmente desperdiçando as qualidades de quem não cumpre os requisitos da aparência e recusando-lhes sequer a oportunidade de contribuir para o êxito de uma iniciativa.
Questões políticas à parte, este episódio e o modo como tem sido tratado na imprensa ocidental, mostra a arrogância moral que nos impede que reconhecer o que vale a pena enaltecer e de guardar as críticas apenas para o que não pode ser tolerado. É por isso que muitas vezes as vozes que deviam ser ouvidas se perdem, pelo ruído estridente que fazem as outras.
Percebo que o regime chinês não desperte simpatias dispostas a tolerar quaisquer fraquezas e que custe um bocado a engolir a dimensão e perfeição do espectáculo mas, francamente, não consigo perceber a ira que este episódio gerou, como se se tratasse da reedição, em formato séc. XXI, do drama de Cyrano de Bergerac. A imprensa, ávida de provar a impossibilidade da China nos impressionar, quis espicaçar-nos com a descoberta de “um drama humano”, ainda por cima de uma criança, a condenação à inexistência de quem é feio, a desumanidade da exigência da perfeição, enfim, a marginalização e a injustiça, associada ao torpe aproveitamento, à socapa, das qualidades aproveitáveis!
Ora, o que me parece é que estamos perante um exercício de pura hipocrisia e de arrogância moral que tanto irrita outras civilizações. O objectivo era apresentar um espectáculo irrepreensível, perfeito, de acordo com os padrões de beleza e perfeição que vigoram na organização. Um espectáculo colectivo, que envolveu milhares e milhares de figurantes e artistas, não era propriamente um desfile de estrelas ou um concurso de talentos. O número em que entraram as duas meninas – uma gravou a canção, outra deslizou nos ares como uma pequena fada - , não era diferente ou seja, não se destinava a dar oportunidade de glórias individuais, era parte do todo. E, como o todo, recolheu o contributo dos melhores para que parecesse uma peça única.Queriam uma imagem bela e uma voz celestial e, sendo certo que a natureza raramente junta todos os expoentes numa só criatura, juntaram duas, escolhendo o que cada uma podia dar: uma apareceu, a outra cantou, formando uma dupla que atingiu plenamente o objectivo, agradar sem reserva.
Não houve “encenação”, no sentido de burla que motiva a indignação, mas uma coreografia admitiu a ilusão de que quem dançava era quem cantava. Li algures que foi uma decisão de última hora, que a menina cantora já era crescida demais para fazer o número visual, seja como for não creio que se justifique tanta indignação nem tantos processos de intenção.
Podemos, claro, contestar o critério, dizer que é uma indecência não deixar a cantora dar a cara só porque é menos bonita, mas que grande injustiça. O que se quer fazer crer é que nós, no ocidente, nunca faríamos isso, se a menina tem a voz que queremos, pois bem, temos que a aceitar tal e qual, senão é injusto, nunca sacrificaríamos a glória e a felicidade pessoal aos objectivos da organização. Ora, não estou nada certa de que os nossos valores, neste aspecto, sejam assim tão irrepreensíveis, basta dar uma olhadela sobre as reportagens que alertam para a discriminação dos gordos e ao modo como são preteridos nos empregos, ainda que sejam melhores para as funções, para sermos mais prudentes a atirar pedradas. E não estamos só a falar de coreografias que são, em si mesmas, criadoras de ilusão. No Ocidente o aspecto conta, e muito, arranjamos é maneiras mais discretas de não sermos “apanhados”, geralmente desperdiçando as qualidades de quem não cumpre os requisitos da aparência e recusando-lhes sequer a oportunidade de contribuir para o êxito de uma iniciativa.
Questões políticas à parte, este episódio e o modo como tem sido tratado na imprensa ocidental, mostra a arrogância moral que nos impede que reconhecer o que vale a pena enaltecer e de guardar as críticas apenas para o que não pode ser tolerado. É por isso que muitas vezes as vozes que deviam ser ouvidas se perdem, pelo ruído estridente que fazem as outras.
6 comentários:
Suzana, estou de acordo que no Ocidente não temos qualquer superioridade moral, até porque somos nós que recorremos permanentemente a técnicas de playback. Neste domínio e em muitos outros.
Dito isto, convenhamos que independentemente das razões que em concreto possam justificar este caso, a verdade é que nunca é bonito esconder quem tem o mérito e permitir que a outros se associe em razão de meros atributos fisicos.
Não condeno, porque - concordo consigo - estas manifestações de indignação não são mais do que ondas de hipocrisia. Mas, confesso, não aprecio o gesto, seja na China ou em Portugal, mesmo que justificado com o carácter "colectivo" do espectáculo.
Já aqui tinha comentado, no seu post sobre a cerimónia de abertura dos jogos, que a China quis mostrar ao mundo um espectáculo e um país grandiosos.
Neste sentido, tal como um romancista ou um realizador de filmes escolhe os personagens que melhor valorizem a suas obras, os realizadores deste evento procederam de igual modo, escolhendo a menina mais fotogénica e mais apropriada fisicamente, para alcançar os objectivos que tinham traçado: a realização de um espectáculo perfeito, em todas as vertentes. E se calhar, esta atitude que para nós é um pouco estranha, para eles é apenas o esforço colectivo de todos em que cada um deu o melhor de si.
Mais uma opinião, Cara Suzana, de quem "sabe da poda". Aqui fica:
"Coisas do Circo
Espectáculo a sério
“O que os chineses fizeram foi uma fabulosa exibição para as televisões de todo o Mundo”.
Muito se disse e se discutiu nos últimos dias sobre as "falsificações" que o espectáculo dos Jogos Olímpicos continha, nomeadamente, o "fogo-de-artifício gravado e a pequena rapariga chinesa que encantou o Mundo (...) em playback", como escreve o semanário ‘Expresso’ num incongruente e ridículo editorial. Quem o escreve vai-se "enterrando" na tentativa de explicar o espectáculo dos Jogos Olímpicos à luz da perversidade de muitas etapas da História da China, onde "aquilo que servia os desígnios dos então senhores de Pequim, apesar de desajeitadamente falsificado, tinha o intuito de riscar da História os derrotados políticos".
Bom, em síntese, o pobre autor daquele, esse sim, canhestro editorial, começa pelo ‘Bando dos Quatro’, pelas "pátrias do fingimento", excomunga o triunfo da "estética cibernética", a desgraça da existência dos computadores que nos "fazem crer na perfeição celestial", interpela os crimes americanos no Vietname ou a Guerra Colonial que os portugueses travaram nas suas ex-colónias e, completamente perdido nesta prosa sem nexo, lá termina com "o que os chineses nos ofereceram nestes Jogos Olímpicos" foi "o mundo a fingir". Chega a ser deprimente. Mas enfim, deixemos o ‘Expresso’ e avancemos para uma interpretação mais óbvia e simples.
Em primeiro lugar, o espectáculo de abertura dos Jogos Olímpicos é isso mesmo, um momento de sonho e ilusão e nada tem a ver com a verdade que se exige aos Jogos que começam no dia seguinte. Em segundo lugar, o espectáculo, este como outros anteriores, é pensado privilegiadamente para televisão e para os milhões de espectadores à frente do ecrã. Em terceiro lugar, todos os espectáculos são assim. São hinos à imaginação, à beleza, à ficção, aos contrastes, às cores, aos sons, às performances, enfim, a todas as formas de criação e encantamento que provocam os sentidos e as emoções das pessoas. É um espaço de entretenimento, usando todos os recursos possíveis. Ou seja, não é um espaço de informação, de reportagem, de documentário, onde, aí sim, se exige rigor, verdade, pesquisa, investigação, etc. Aqui exige-se o encantamento e o fascínio.
Desde o Neolítico até hoje foi sempre assim. O que os chineses fizeram foi uma fabulosa exibição para as televisões de todo o Mundo. É preciso prestar homenagem ao homem que concebeu aquele espectáculo e dar vivas à imaginação e à capacidade de criação do ser humano. É o "fingimento" das artes visuais, do teatro, do cinema, da música, do canto, da destreza, do talento. É o espectáculo de entretenimento da televisão."
Emídio Rangel, Jornalista
CM
abraço
Suzana
Ocidentais e orientais, ambos buscam o sucesso, a grandiosidade, o poder, a força, etc.
Mas os métodos são muitas vezes, na competição feroz de ser o maior ou o melhor do mundo, ética e moralmente reprováveis.
O que os chineses fizeram com as duas Meninas é muito feio!
Yin e yang... estas meninas, para mim, ambas lindíssimas, completam-se e, se o mundo não for cego e surdo, será fácilmente capaz de establecer a simbiose entre ambas.
Não sei se no seu íntimo, alguma destas meninas sentiu a injustiça que a moral ocidental assinalou. Não sei se a menina cantora sentiu ciume da menina bonita e vice-versa. Talvez ambas tenham sentido dentro dos seus corações um orgulho desmedido por estarem a representar a sua enorme nação. De entre milhões de crianças, foram elas as escolhidas. Muito naturalmente, este terá sido um momento que irá acompanha-las durante toda a sua existência, independentemente do reconhecimento ou da discriminação de que foram alvo, aos olhos do resto do mundo. Afinal e na realidade, se uma das meninas foi forçada a ficar escondida enquanto cantava, outra foi forçada a ficar silenciosa, enquanto voava. Mas... a unica e indesmentível verdade é que, durante alguns minutos, ambas voaram e conquistaram distâncias num espaço, numa dimensão, onde provávelmente, nenhum outro ser humano chegará.
Agora... a inevitável teoria Bartolomeunesca (não sei como é que ainda ha quem tenha pachorra para aturar este fulano):
Se olharem com atenção para o ângulo em que o olhar de ambas as meninas se projecta e se traçarem uma linha imaginária sobreposta, prolongando essa linha, concluem que em ambos os casos essa linha atravessa precisamente a base do crâneo o Cerebelo que é a parte do encéfalo responsável pela manutenção do equilíbrio e postura corporal, controle do tónus muscular e dos movimentos voluntários, assim como do talento artístico... sintéticamente, fica assim tudo explicado.
Gostaria de saber onde teve origem esta tão europeia superioridade moral e ética, que nos permite sempre apontar o dedo aos "maus", e em que local (imaginário provavelmente) se encontram as palavras e os actos. Pelo que tenho visto de ambos os lados da "muralha", é tudo areia do mesmo saco, salvaguardando algumas diferenças culturais (uns prezam mais o colectivo, outros mais o individual).
Veja-se por exemplo a diferença de tratamento que é dado ao Kosovo e à Ossétia/Abkhazia.
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