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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

“Vinismo”

As virtudes do vinho têm sido, nos últimos anos, divulgadas à exaustão. Não há dia que não surja uma notícia sobre os efeitos benéficos na saúde, apontando como responsáveis, entre outras, substâncias como os polifenóis e o resveratrol.

As doenças cardiovasculares são a principal atracção desta campanha, a que não devem ser alheios muitos produtores e industriais. Quanto mais venderem, mais lucram, além de oferecerem à população um meio profiláctico de preservar a saúde e prolongar a vida! Enriquecem as economias nacionais e evitam doenças. Nada mau.

Mas não se pense que esta ideia de o vinho fazer bem à saúde é de agora. Qual quê! Já tem muitos anos.

A este propósito, não queria deixar de comentar um interessante ensaio sobre “O Vinho na Medicina” da autoria de um português, Fernando de Castro Pires de Lima, incluída na obra, “Ensaios”, publicada em 1943.

O autor, que era médico, dedicava-se à etnografia, facto que o levou a escrever um ensaio com o objectivo de demonstrar que o vinho é um importante elemento terapêutico em diversas doenças, chegando ao ponto de considerar esta hipótese como “revolucionária”.

Descreve exemplos curiosos, sobretudo das pessoas do Minho, que usavam, segundo o Padre António Vieira, “aquele cordeal simples, medicado pela natureza para alegrar o coração humano”. “As cefaleias desaparecem com um bom copo de vinho verde” (Dói-me tanto a cabeça, Que me quer cair ao chão, Dai-me mais uma pinguinha, Ou ela me caia ou não…). Dores de ouvidos? Lançar um pouco de vinho morno no ouvido doente! E eu que levei com leite de mulher! Laringites e faringites? Nada melhor do que meia dúzia de copos de vinho verde com açúcar. O indivíduo está fraco? Uma tigela de vinho tinto com sopas de boroa fortalece-o rapidamente. Espinhela caída? Pão-de-ló embebido em excelente vinho verde! Aqui fiquei furioso! Quando era pequeno, talvez porque devia andar meio enfezado, fizeram-me o diagnóstico popular de que devia ter a espinhela caída. Chamaram uma mulher, meia trombuda e seca, lá das bandas do Rossio, para me levantar a espinhela. Foi um tormento. Entre rezas, lamparinas e movimentos bruscos, fui sujeito a uma besuntada, nos bracitos, nos punhos e no peito, com azeite. Não suportava aquela gordura e muito menos o cheiro que me fazia lembrar o azeiteiro que cheirava a ranço que tresandava. Se tivesse tido conhecimento desta medida exigiria de imediato que me dessem pão-de-ló embebido em vinho em vez daquele ritual assustador. Se não houvesse vinho verde sempre havia tinto!

O ensaísta continua na sua longa lista de efeitos benéficos. Para aumentar a diurese, vinho verde e muito! Para tratar as diarreias e a obstipação, vinho. Para combater as dores do tubo digestivo, vinho. Para curar furúnculos e feridas exteriores, vinho. Em certos tipos de doenças cardíacas, nalgumas doenças infecciosas, incluindo blenorragias e enterites (!), nas bronquites e nas anginas, e sei lá que mais, vinho. Não há praticamente doença nenhuma que, na perspectiva de antanho, não possa ser tratada com vinho, excepto, talvez, as úlceras gastro-duodenais e o cancro do estômago, afirma o autor. No entanto, até nas úlceras, se o vinho for fraco ou traçado com água, os efeitos benéficos manifestam-se quase de imediato.

A apologia ao vinho é de facto extraordinária. O autor recomenda que toda a gente devia beber vinho, inclusive até as crianças. Deveria ser um imperativo nacional! Obviamente que descreve alguns cuidados a ter com a ingestão que deve ser moderada e adequada a cada caso e a cada tipo particular de afecção. Muitas vezes preconiza o uso de vinho fraco ou então misturado com água, em proporções adequadas.

A este propósito, vinho misturado com água, recordo que, em miúdo, nos decursos das brincadeiras com os meus amigos, ficar, naturalmente, com muita sede. Batia à primeira porta e pedia um copo de água. – Água? Nem pensar nisso meu menino! Espera um pouco que eu faço-te um refresco. Passados alguns minutos, era presenteado com uma generosa caneca de barro cheiinha de uma mistura de água e vinho a que juntavam um pouco de açúcar. Vinha mesmo a matar. Sabia tão bem! Noutras casas não me davam este tipo de refresco, mas sim um à base de groselha ou de capilé. Pessoalmente preferia o outro, mais saboroso e mais energético…

Daqui a alguns anos, quando os seres humanos andarem cheios de próteses, de fios, de mecanismos nanotecnológicos, implantes e órgãos artificiais, é provável que apareçam artigos, e as correspondentes notícias, a afirmarem que está provado, cientificamente, que as próteses duram mais, os fios não fazem curto-circuitos, os dispositivos nanotecnológicos são muito mais eficientes, enfim, que os doentes, para não falar dos sãos, viverão muito mais anos, caso bebam vinho! Espero que não digam: - Mas só do tinto!

Também fiquei a saber que o famoso professor Portman, que presidiu ao “Primeiro Congresso do Comité Internacional para a propaganda do vinho” (Lausanne, 1935), citou, na abertura do congresso, a seguinte frase de Mussolini: “O homem doente que bebe vinho chega a mais velho que o médico que lhe proíbe”. Nem mais. Não sei se o dito bebia vinho! Pelo menos não evita mortes violentas! Deve ser por isso que, ainda hoje, depois de muitos conselhos dietéticos, higiénicos e farmacológicos, lá vem, no final da consulta, a pergunta sacramental: “Senhor doutor, eu posso beber um copito de vinho?”. Ou não fôssemos portugueses e…portuguesas!

Vinismo – termo utilizado no Estado Novo em contraponto ao alcoolismo: “vício benigno e salutar”!!!...

6 comentários:

Bartolomeu disse...

Chegando ao capítulo XX do livro "Medicina Theologia" do qual possuo um exemplar que me foi gentilmente oferecido por um amigo muito querido, encontro no resumo do mesmo o seguinte: A bebedice he huma grande enfermidade, que nunca se cura com grandes remedios moraes, e difficilmente com os fysicos.
É ainda referido no inicio deste capítulo que é de lamentar o facto de a medicina apontar o vinho como o remédio capaz de curar muitas enfermidades, pois o autor encontra no vinho variadíssimos e letais venenos. Refere tambem que os autores de medicina aconselham u uso moderado do "tintol", citando Grillus que atribuia a sabedoria grega nos campos das artes e ciências, ao uso de vinhos de "bondosa" qualidade, tal como o superior engenho dos europeus, comparativamente ao dos povos setentrionais.
Bom, o capítulo é demasiado longo para que o transcreva na íntegra, contudo, no seu percurso, vão sendo apontadas citações e opiniões quer contra, quer a favor da ingestão deste licor-veneno-remédio.
Em minha opinião e dos velhotes lá da aldeia onde resido, um ou dois copitos acompanhando a refeição, não criam rãs na barriga, que é o que acontece se se optar por beber água... blahg, não deve ser nada simpático estarmos a conversar com alguem e saltar-nos da boca uma rã... verde... com aqueles olhos enormes e a língua de dois palmos a colar-se a uma mosca que eventualmente esteja poisada na testa do nosso interlucotor...
;))

jotaC disse...

Bebido quando o corpo "pede" e na justa medida é um bom antídoto para muitos males...
Um amigo meu escreveu assim uma das suas memórias:

"O meu pai era agricultor, trabalhava as terras habitualmente só, excepto nas cavas e colheitas em que rogava homens para o ajudarem.
Lembro-me que estes homens rogados trabalhavam de sol a sol, num esforço titânico, só possível devido ao efeito “analgésico” que o vinho servido, generosamente, de hora a hora, sempre no mesmo copo e a começar invariavelmente no homem mais velho, num sinal de respeito, tinha sobre os corpos doridos e cansados, de tanto se vergarem sob o sol abrasador a cavar a terra ou a ceifar o centeio imenso da seara grande."

Massano Cardoso disse...

Meus caros amigos

Subscrevo o Padre António Vieira, quando afirma: “aquele cordeal simples, medicado pela natureza para alegrar o coração humano”.

Já agora caro Jotac: é possível partilhar as memórias do seu amigo? É que pela amostra apetece lê-las tal como apetece saborear um copo de um bom vinho!

Suzana Toscano disse...

Caro Massano Cardos, a esse refresco de vinho, água - pouca!, só para "baptizar" - e açúcar, chamava o meu avô "sopas de cavalo cansado"...Gente rija, era o que era!

Pedro disse...

Meu caro Massano Cardoso,

Acabou de descobrir a solução dos problemas do médio oriente. Exportar vinho para arrefecer os tórridos ânimos...

Cumprimentos,
Paulo
PS: Cara Suzana Toscano, as sopas de cavalo cansado não levam água... são nacos de pão (ou migas) regadas com vinho e açúcar -- uma autêntica bomba calórica.

jotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso:
Estou-lhe muito grato pela atenção que dispensou ao meu comentário.
Vou convencer o meu amigo a juntar-se a este espaço e a revelar-nos mais algumas das suas memórias…