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quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Não houve acidente!...

O post do Prof. Massano sobre o inquérito ao acidente da Linha do Tua que não sabe explicar as causas do dito e o subsequente comentário do Zuricher fez-me recordar uma outra história, verídica, de um acidente na CP, que aprendi nos tempos em que exerci actividade profissional na Sorefame, um importante e internacionalmente prestigiado construtor de carruagens de comboios, que não conseguiu resistir aos erros dos governos e à concorrência internacional.
Num qualquer ano das décadas de cinquenta ou sessenta, deu-se um descarrilamento de grandes proporções de um comboio da CP, felizmente sem danos pessoais de monta, mas com significativos prejuízos patrimoniais. Seguiu-se o inevitável e obrigatório inquérito.
No seu plano de trabalhos, o inquiridor ouviu o chefe da estação, o maquinista e o ajudante, o homem que batia com um martelo nas rodas antes de o comboio partir, o controlador que autorizou a partida, o agulheiro do local, o revisor, o electricista-chefe e o mecânico-chefe, o serviço de manutenção, o engenheiro-chefe da via e obras e os engenheiros-chefe dos mais diversos departamentos da empresa.
Dos depoimentos recolhidos, verificou que o comboio partira no segundo exacto, que a via estava desimpedida, que a manutenção das linhas e travessas tinha sido efectuada no mês anterior, que a máquina e carruagens eram recentes e estavam como novas, que a sinalização tinha funcionado a cem por cento, que o maquinista e ajudante tinham descansado bem na noite anterior e cumprido escrupulosamente a lista de tarefas e, nomeadamente, não tinham excedido a velocidade, que o agulheiro não trocara o trajecto, enfim, que tinham sido cumpridos todos os procedimentos regulamentares.
Ficou perplexo o inquiridor, que pediu mais uns dias ao Conselho de Administração para novas averiguações. Consultado o Governo do Prof. Salazar (nesse tempo e agora, as coisas são iguais…), foram-lhe concedidos mais três dias.
Gastou meio dia em mais umas averiguações e ficou com o resto do tempo para pensar e redigir as conclusões. Depois de profunda reflexão, pegou da caneta para redigir a conclusão final.
Conclusão
“Ouvidos os departamentos e responsáveis envolvidos, as suas chefias e sub-chefias, inquirido o chefe da estação de partida e os chefes das estações imediatamente anterior e posterior ao acidente, o agulheiro de serviço, o controlador da via, os operários da manutenção, os electricistas, os mecânicos e o maquinista, e todo o restante pessoal que consta do Inquérito e que, por isso, me dispenso de agora citar, e tendo todos evidenciado e comprovado de forma exaustiva o integral cumprimento das as normas em vigor, conclui-se: Não houve acidente!...
Dizem as más línguas que o CA não apreciou totalmente o teor das Conclusões, pelo que acidentado ficou o Inquiridor, alvo, ele próprio, de um inquérito disciplinar. Suma injustiça!...
A reparação foi, no entanto, feita, quando foi nomeado Administrador da empresa, dizia-se!...

7 comentários:

Anónimo disse...

Ahahahah, Pinho Cardão, obrigado por essa pérola doutros tempos, que também as havia. Convenhamos, um presidente duma comissão de inquérito escrever uma coisa dessas num relatório final dum acidente é obra. É fantástico ter o atrevimento de escrever uma coisa dessas, realmente.

Os dois descarrilamentos em inquérito no Tua não terão esse desfecho, espero. É muito certo que ainda não passou tempo demais para ser fechado o primeiro dado isto serem coisas que levam mais de um ano a concluir em muitos casos. A minha grande dúvida é se alguma vez o serão satisfatoriamente porque, tal como o inquiridor do desastre que o Pinho Cardão apresenta, tanto quanto sei não há ainda hoje em Portugal quadros com especialização de investigação de acidentes ferroviários e que, nestes casos, seriam indispensaveis. Ora, não havendo, a solução passaria por contratar onde eles existem. Será que isso vai ser feito? Talvez...

Incidentalmente, o aporte dado por estes acidentes ao conhecimento técnico é vastissimo dado aprenderem-se coisas até ao momento desconhecidas sobre os vários aspectos envolvidos no sucedido. Até por isto, pelo desperdiçar de conhecimento que representa estes acidentes não serem investigados em devida regra, dever-se-ia evitar manter o rame-rame e, para poupar uns tostões - ou manter o orgulho e o ego intactos -, não se ir buscar o conhecimento para a tarefa onde ele existe.

Anónimo disse...

Extraordinário, Pinho Cardão, extraordinário!

PA disse...

se calhar 'tava nevoeiro ....:-)

ironizo, mas estou a falar a sério, pq o caso pode ser para tudo, menos para graçinhas de mau gosto.


ora aqui está um tema que é a continuação de outro, tragicamente nosso conhecido:

- A ponte de Entre os Rios (Castelo de Paiva).

A Justiça concluíu que foram as condições naturais que originaram a tragédia do autocarro. Creio. Não houve "culpados".

sabem uma coisa ?

às vezes sinto-me a viver no Burkina Fasso, e então quando o Caríssimo Zuricker afirma que não temos técnicos especialistas em acidentes ferroviários, sendo nós um país com actividade ferroviária a caminho dos duzentos anos, fico mesmo sem palavras.

É mesmo verdade Zuricher ?

Na Refer, na Emef, não há nenhum especialista de Acid. Ferrov. ?

jotaC disse...

Caro Drº Pinho Cardão:
Se ele depois foi nomeado administrador teve muita sorte, porquanto, um caso que me foi contado (a fonte é fidedigna), o assessor incumbido por Salazar para escolher um Mercedes, acabou despedido...
Passou-se em 1968, o carro foi importado directamente da Alemanha (uma limousine enorme, lindíssima, já naquela altura equipada com vidros eléctricos e outras particularidades, agora corriqueiras.
Logo que o carro chegou a Portugal foi levado a S. Bento para aprovação de S.Exa.
Segundo me foi relatado, S.Exa. ficou estupefacto a olhar para tal beleza, espreitou e nada comentou; de repente virou-se, subiu as escadas seguido do assessor. Chegado ao gabinete despediu-o.
Isto foi-me contado há 20 anos pelo próprio chefe de vendas da Mercedes que levou o carro a S. Bento.
Eu e acredito piamente neste episódio…o carro ainda circula e continua a ser espectacular…e olhando bem para o carro consigo perceber o motivo que levou Salazar a despedir o assessor

Anónimo disse...

Querida Pezinhos, tanto quanto sei e do que conheço das empresas envolvidas bem como das investigações que estão a ser feitas ao descarrilamento anterior, efectivamente não existem técnicos com a especialidade de investigação de acidentes ferroviários em Portugal. Há quadros que desempenham essas funções, porém, mas isto é diferente de serem quadros com treino e especialização formal no tema.

Isto, porém, não é algo assim tão estranho dada a envolvente do tema.

A especialidade de investigação de acidentes ferroviários - tal como aéreos ou marítimos - é uma especialização para engenheiros civis, mecânicos e de transportes que lhes dá as ferramentas para investigar os acidentes e incidentes ocorridos no transporte ferroviário. Ao longo de muitos anos foi descurada em toda a Europa - mas não nos Estados Unidos onde esta especialização existe há décadas - a investigação dos acidentes ferroviários por pessoal treinado especificamente para essa função.

Tentando colmatar esta falha, na sequência da liberalização que tem vindo a ser feita no transporte ferroviário europeu, aprofundando as regras para interoperabilidade dos sistemas ferroviários de todos os estados membros, criando objectivos comuns de segurança ferroviária, métodos comuns de segurança ferroviária e harmonizando as regras estatisticas de contabilização dos acidentes e incidentes - à semelhança do que já existia para a aviação -, em 2004 sai a directiva europeia 2004/49/CE que harmoniza diversos procedimentos e normas relativos à segurança ferroviária e prevê, precisamente, a criação de organismos especializados na investigação de acidentes ferroviários. Estas estruturas têm que ser totalmente independentes dos organismos reguladores, dos gestores da infra-estrutura, de qualquer companhia ferroviária ou de qualquer outro actor do sistema ferroviário o que facilmente se percebe para manutenção da sua isenção. Estas normas foram transpostas para o nosso ordenamento jurídico em 2007 através de vários DL, sendo aqui os mais relevantes os 394/2007 de 31 de Dezembro, que estabelece as normas para a investigação dos acidentes, e 395/2007 de 31 de Dezembro, que aprova a lei orgânica do Gabinete de Investigação de Segurança e de Acidentes Ferroviários.

E por aqui ficámos. O GISAF não saiu do papel e, embora exista em termos teóricos, na realidade não existe. Ora, ao não existir, não foram cumpridas as necessidades de formação de quadros que o integrem, logo, a investigação ferroviária fica um pouco no ar e faz-se com as pessoas que existem. Em geral estas pessoas seriam suficientes dado que, por via de regra, os acidentes ferroviários não têm muito que saber e normalmente não é complicado encontrar o motivo ou os motivos que lhes deram origem. Porém, de vez em quando aparecem acidentes e incidentes que têm muito maior complexidade e nenhum dos motivos normais pode ser apontado como seu causador. Precisamente para lidar com estes temas existem os especialistas no ramo que cá em Portugal estão em falta.

É isto em si muito grave? Na realidade não dado que existem outros organismos homólogos na Europa que têm o dever de prestar colaboração, se solicitada pelo GISAF, e até mesmo a Agência Ferroviária Europeia com meios técnicos e humanos para realizar peritagens, investigar o que for preciso e tirar do acidente as lições necessárias por forma a prevenir situações identicas ou semelhantes no futuro. A questão prende-se é com, efectivamente, pedir a colaboração dessas entidades para a investigação.

Em larga medida por tudo isto é que a ideia do ministro Lino de entregar à Universidade do Porto - casa que me merece o maior dos respeitos - a investigação do acidente é totalmente absurda, fora de qualquer nexo, e indica-me mesmo que o pobre homem não tem a mais pequena ideia do quadro legislativo nacional e europeu que regula estes assuntos. Não tem o mínimo de sentido ser a FEUP a coordenar a investigação dado que provavelmente não tem técnicos especializados no assunto em apreço. Assim, obviamente, deveria ser o próprio ministério - mesmo directamente que fosse já que o GISAF é letra morta - a entregar o assunto aos organismos especializados que existem na Europa, com pessoal e com os meios necessários a essa investigação. Ou seja, entregar a investigação àqueles que, por tudo isto, são precisamente os que a devem realizar. Há casos em que não basta recorrermos a um entendido na matéria. Precisamos mesmo dum especialista.

PA disse...

Caro Zuricher, muito (muito) obrigada pelo tempo que me dispensou, a explicar a questão que lhe coloquei.

Bem Haja.

Anónimo disse...

Querida Pezinhos, não tem absolutamente nada que agradecer. As suas amabilidade e simpatia tornam-na credora de todas as explicações que possa precisar e esteja ao meu alcance dar-lhe.