Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 9 de julho de 2009

De Wonderland ao supermercado

Poema do Fecho éclair
Filipe II tinha um colar de oiro
tinha um colar de oiro com pedras
rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.
Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rochado
mais transparente.
Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.
Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.
Foi dono da terra,
foi senhor do mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.
Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safira, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.
O que ele não tinha
era um fecho éclair.
Nota: (Filipe II teria da viver até aos finais do Séc. XIX para poder ter o seu fecho éclair)
António Gedeão

Não consegui deixar de ver ontem, na Sic, já pela madrugada, o programa dedicado a Michael Jackson, esse ídolo enigmático, genial na música e no espectáculo, preso da sua infância mal vivida e da celebridade que o manteve cativo das multidões que o isolaram da vida comum. Wonderland, Make-a-Wish, Peter Pan, ele era personagem no seu mundo imaginário que desesperadamente tentou fazer real, ou era um monstro mascarado, um milionário excêntrico, um homem perigoso e imprevisível?
O programa de ontem era aquela comparação, que deu tanto brado e fez correr rios de tinta (há milhares de textos na net sobre o assunto), entre o que foi publicado da entrevista que o cantor deu, em 2002, ao conceituado repórter Martin Bashir, tido como sério no seu trabalho com celebridades, e a gravação integral da mesma entrevista feita pelo assistente de MJ, que sempre exigia esse registo em simultâneo. O resultado é chocante, o tom insinuante que Bashir usa para captar a confiança de Michael Jackson, e o tom agressivo e acusador, até sarcástico, com que vai comentando as respostas quando apresenta o trabalho em público. As respostas algo infantis e abertas, às vezes desconcertantes pela ingenuidade com que esclarece os grandes “mistérios” da sua vida, depois reproduzidas apenas parcialmente, desvirtuando por completo o seu sentido e dando origem a outros tantos escândalos, a acrescentar aos que infernizaram a vida do cantor. Um impressionante monumento de mistificação e de perversidade posto a nu pela comparação de imagens e textos integrais, como tantas vezes vemos quando conhecemos directamente os casos apresentados à opinião pública.
No fim, Bashir pergunta-lhe se havia alguma coisa que ele, com a sua fabulosa fortuna, gostasse de fazer e não pudesse. E o menino-adulto respondeu:
- "oh, sim, gostava de ir ao supermercado, pegar num daqueles carrinhos, enchê-lo de compras e ficar ali na fila, no meio das pessoas, à espera da minha vez para pagar…Sim, era isso que eu gostava", com o olhar ausente de quem sonha com a lua.
Pobre rei idolatrado que, tendo o impossível, não tinha o mais banal. Nem teria precisado de viver noutro século, como Filipe II, bastava-lhe ter tido a liberdade reservada ao comum dos mortais…

6 comentários:

Suzana Toscano disse...

Desculpem, mas não consegui formatar o poema...:(

Anónimo disse...

É um daqueles que está sempre formatado, Suzana :)

Manuel Brás disse...

Um rei empobrecido
no fausto da celebridade,
viu o sonho esmorecido
pela mais simples banalidade.

Cativo das multidões
e de cara mascarada,
o mundo das devassidões
de uma fantasia venerada.

Faltando-lhe o banal
no meio da fantasia,
foi triste o final
com tanta anestesia.

Suzana Toscano disse...

Belo resumo, caro Manuel Brás, isso é que é inspiração!

Félix Esménio disse...

Algumas pessoas tendem a olhar o mundo através de um daqueles espelhos, que existiam na antiga feira popular, que deformam a imagem.
A realidade além de virtual aparece distorcida.
Por vezes fazem isso individualmente, outras em grupo. Em ambos os casos, porém, focam-se em si próprios e julgam que tudo o mais decorre da sua existência, do seu modo de olhar as coisas, da sua forma de viver.
Todos somos mais ou menos tentados, ao longo da nossa vida, pelo egocentrismo.
A dificuldade não está, em regra, no controlo desta característica natural. O problema reside na astenia, no alheamento da realidade, ou, pelo contrário, na convicção de que o mundo se deveria conformar à nossa visão esclarecida, e porventura ideal, de um determinado modelo de sociedade. Quando assim acontece, ou temos vontade de desistir ou de impor este modo peculiar de ser ou sentir.
A vida não tem que ser assim tão dramática, se nos mantivermos atentos e fiéis às coisas mais singelas da existência. Nem sempre é simples, principalmente para aqueles que vivem a fantasia dos excessos.

Bartolomeu disse...

Cara Drª. Suzana,
Daquilo que chega ao conhecimento do público em geral, acerca do cantor-dançarino-actor, sabemos que Michael Jackson foi "ídolo enigmático, genial na música e no espectáculo, preso da sua infância mal vivida e da celebridade que o manteve cativo das multidões que o isolaram da vida comum. Wonderland, Make-a-Wish, Peter Pan, ele era personagem no seu mundo imaginário que desesperadamente tentou fazer real, ou era um monstro mascarado, um milionário excêntrico".
Aquilo que não podemos saber é: quantos cidadãos comuns, mentalmente equilibrados, sem saber cantar, dançar, representar, pobres, absolutamente anónimos, estariam dispostos a tornar-se um Michael Jackson, conhecendo antecipadamente todos os convenientes que essa transformação acarretaria...?