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segunda-feira, 20 de julho de 2009

Sopa

Um dia destes acordei de manhã no preciso momento em que estava a sonhar que comia uma sopa cremosa, fumegante, colorida, sabores múltiplos, dos quais se destacava a hortelã-pimenta e dois nacos de uma carne esbranquiçada que se desfazia docemente na boca. À mesa, muitas pessoas a discursarem, enquanto eu, contra toda a etiqueta, ia saboreando sofregamente a misteriosa receita, tentando matar uma fome insuportável e deixando a retórica para os outros. Acordei com fome. Estranho sonho. Nunca me tinha acontecido semelhante coisa. Claro que se me perguntarem se gosto de sopa, digo logo que sim. E é raro não gostar, agora!, porque em criança levava de vez em quando uns calditos, mas não eram de galinha, para a comer. Pensei: - Qual terá sido o fator que desencadeou o sonho? De repente, lembrei-me que antes de deitar tinha lido vários artigos, um dos quais me levou ao passado e que tinha a ver com uma outra sopa, a “sopa primordial” de Stanley Miller que, em 1953, com apenas 23 anos de idade, efetuou uma interessante experiência em que conseguiu produzir alguns aminoácidos. Mediante descargas elétricas num recipiente de vidro que continha água, amónia, metano e hidrogénio, matérias-primas abundantes no início deste planeta, simulando a hipotética atmosfera da altura, produziu as primeiras moléculas orgânicas. Ainda era muito novo quando ouvi que tinha sido realizada esta experiência. A minha mente juvenil, treinada na criação do mundo de acordo com as regras da época, levou-me a associar a tal “sopa” às minhas intolerâncias com algumas sopas de que não era propriamente adepto, retirando, confesso, uma fabulosa sopa de feijão que a minha avó fazia. Tirando esta, só um caldito de cebola para os momentos de doença, quanto às restantes não era propriamente um gourmet, muito pelo contrário, nomeadamente quando tinha nabos e couves duras. No tocante aos caldos de galinha, aqueles olhos de gordura a boiar fitavam-me de tal modo que ficava sem apetite, isto para não falar dos ovinhos que descobriam dentro do animal. - Sopa!? Repeti, quando ouvi o professor na tentativa de nos iniciar nos mistérios da ciência. Sopa da vida, dizia! - Afinal Deus começou a vida com uma sopa ou moldou o homem com o barro? Perguntei, meio confuso. Mas a pergunta foi mesmo no sentido literal. Barro com que fazem os bonecos, os cântaros e os púcaros e sopa do género batata, feijão, couves, nabiças, cenouras, azeite e muitos outros produtos. Quanto à descarga elétrica, interpretei-a como sendo o equivalente de calor para cozinhar a sopa, à falta de um fogareiro. Mas não, como depois percebi, tratava-se de um outro “cozinhado” cujo impacto era muito mais profundo do que poderia pensar ao princípio.
Afinal andavam a “dar sopa”, mas esturricada, a saber a “bispo”, expressão que sempre ouvi lá em casa mas cuja origem desconheço. As expressões sobre sopa não ficaram por aqui. Na adolescência, quando um jovem queria pedir namoro a uma rapariga e esta não ia na cantiga, a rapaziada gozava dizendo: - Então? Deu-te sopa! Desconhecia as razões por que diziam isto! Dar sopa é oferecer um alimento muito útil e importante à saúde. Descoberto ou construído, sabe-se lá quando, talvez no Paleolítico, quando alguém colocou um pedaço de carne em água a ferver. Nascia o caldo. De qualquer modo, os gregos aperfeiçoaram esta técnica, a tal ponto que criaram o Caldo Negro de Esparta, que devia ser um caldo que era incapaz de comer; sangue de animais, vinagre e ervas aromáticas que tornava os espartanos naqueles doidos quando iam para o campo da batalha, desprezando a vida. Bah! Deviam era desprezar o raio do caldo, pois devia ser melhor morrer do que prová-lo!
“Molhar a sopa” é uma expressão muito utilizada quando alguém se lembra de fazer confusão. – Então! Também foste molhar a sopa? Hoje em dia é o que se vê mais por aí, pessoal a “molhar a sopa”, a torto e a direito, tamanha é a confusão. Há quem “engrosse o caldo”, na cozinha com fécula da batata, mas na vida social como forma de provocar uma discussão desagradável. Claro que há muitos que não têm qualquer pejo em “entornar o caldo”. Quando se fala de sopas pensa-se logo nos pobres, ao ponto dos portugueses terem instituído oficialmente a “sopa dos pobres” que continua hoje sob formas e designações diferentes. Recordo-me inúmeras vezes os pobres da minha juventude que batiam à porta e pediam um prato de sopa. E davam, acompanhado de um bom naco de pão.
Muito se pode dizer ao redor deste alimento curioso e promíscuo, no qual inúmeros gradientes em doses e combinações variáveis permitem produzir tão variadas e agradáveis sabores e texturas.
A vida depende da sopa, que digam os bebés na sua verdadeira iniciação ao mundo. Sopa, fonte da vida. Sopa, alimento saudável, a “tranca da barriga”, capaz de despertar emoções e sentimentos ao ponto de fazer inveja a qualquer memória proustiniana e até científica...

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
De: António Gedeão, ou, Professor Rómulo de Carvalho, como for da nossa preferência.
Óh Senhor Professor, já que quebrou as regras etiquetais, saboreando o seu caldo, esquivando-se à conversa social, passe a colocar um naquinho de pão sobre na mesinha de cabeceira... para ir molhando no caldo...
Bom, e eu sempre a dar na palermice... é um "dom"... o que posso fazer!?
Este seu texto caro Professor, tem a faculdade, como tantos outros da sua autoria, de me estimular as recordações, tambem de infância. Uma delas, a minha incompatibilidade com a sopinha. Fui um martírio para a minha mãe que não conseguiu convencer-me a consumir esse precioso alimento. Hoje, aprecio qualquer sopa, desde que inteiramente triturada e transformada em creme. Traz-me ainda uma outra recordação de infância. Um familiar da minha mãe que emigrou muito jovem para o Brasil e lá, construiu um imenso império, tornando-se num homem riquíssimo. Quando vinha a Portugal, ficava numa moradia no restelo que era sua propriedade e á hoje uma embaixada. Mal chegava a Portugal, visitáva-nos e pedia aos meus pais para me deixarem passar os dias da sua estadia em sua casa. A primeira vez que isso sucedeu, fui surpreendido ao pequeno almoço com uma sopa, mas, não era uma sopa qualquer... a sopinha era servida numa tijela bojuda, tipo uma terrina em miniatura e era constituída por uma cenoura, um nabo e uma batata que boiavam na agua da cozedura e eram enfeitados por umas folhas de hortelã. Sobre a mesa, esperavam ainda frutos, bolo, queijo, pão, etc. Contudo, o acesso a esses alimentos era condicionado ao consumo prévio da sopinha.
Foi trágico, caro Professor, acredite. Teria uns 6 ou 7 anos de idade, mas a imagem desses momentos não mais me abandonou.
Resumindo, a visão do caldo, acompanhada com a obrigação de o ingerir, causaram-me tamanho desarranjo no estômago e no sistema nervoso, que passado alguns momentos, perante o olhar inquisidor do casal, desatei num choro, e a pedir para voltar para a minha casa, que deixou os nossos familiares em pânico. Depois de regressar a casa e de tudo ficar esclarecido, lá voltei à companhia deles, mas com a garantia de que estaria liberto da famigerada sopinha.
;)

PA disse...

minha rica sopinha.


eu sem sopa não era nada feliz.

As sopas da minha mãe são as melhores do mundo. Muito saudáveis e muito bem confeccionadas.

A sopa alimenta-me o corpo e aquece-me a alma.

Eu adoro sopa e os textos escritos pelo Professor Salvador Massano Cardoso.

abraço Prof. !