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terça-feira, 28 de julho de 2009

Queria viver!

Gary Reinbach, um jovem de 22 anos, morreu por cirrose hepática. Bebia desde os treze anos de idade, altura da separação dos pais, e praticava binge drinking, como tantos outros jovens, independentemente da nacionalidade. Entre nós começa a ser, também, uma prática frequente, a procura da sensação de embriaguez imediata. Em consequência dos seus hábitos, Gary acabou por adoecer gravemente e, muito provavelmente, não deveria ter noção dos riscos que corria. Perante a situação só lhe restava a transplantação, mas foi-lhe negada, baseada no facto de não acreditarem na mudança dos hábitos do jovem. De acordo com as regras construídas por aquelas bandas, seria necessário que se mantivesse sóbrio durante seis meses. Mas como? Se o rapaz não chegou a sair do hospital! A mãe lutou pelo transplante e afirmou que o jovem queria viver. A situação causou polémica. Afinal, Gary merecia ou não uma segunda oportunidade de vida? Pessoalmente, penso que sim. Merecia. Mas foi-lhe negada, com base no pressuposto de que há poucos órgãos e que só devem ter acesso os que deem garantia de “bom comportamento”. No caso vertente, foi feito, por um jornal, um inquérito à população sobre se devia ou não receber um fígado. Surpreendentemente 60% afirmaram que não! Esta posição incomodou-me, porque há uma atitude moralista face ao alcoolismo do jovem. Eu pensava que o alcoolismo era considerado como uma doença, depois de durante muitos anos ter sido considerado como um vício, um pecado! Há um retrocesso que pode ser perigoso, ao associar certas situações a atitudes eivadas de moralismo. É certo que o comportamento determina muitos problemas, mas negar a “cura” com base na impossibilidade de mudança de hábitos é mau. Fiquei incomodado com a postura das autoridades médicas e da população inquirida. Como responderiam as pessoas que “negaram” a transplantação a Gary se este fosse filho, irmão ou neto, por exemplo? Diriam “não”? É óbvio que não! Moralistas de meia-tigela. Ainda um dia hão de sofrer na pele as consequências desta atitude. Quanto aos médicos, eu compreendo que a falta de órgãos é um grave problema. Mas as regras que construíram são imutáveis? Não! Evoluem e adaptam-se às novas situações. Neste caso concreto portaram-se como deuses negando o direito a viver. Será que se fosse outra pessoa teriam tido a mesma atitude? Não teriam mudado ou contornado as regras? Eu sei que os médicos das transplantações fazem milagres, que nem Deus consegue fazer, mas comportarem-se como seres divinos parece-me demais. Um dia corremos o risco de sermos tratados em função do nosso comportamento. Resta saber quem é que vai atestá-lo, e com que fundamentos!

13 comentários:

Conversa Inútil de Roderick disse...

Esta chocou-me!!! Mundo este, em que vivemos...!!!!!!

Adriano Volframista disse...

Caro Professor

O caso que relata e comenta no seu post não me impressionou.
Neste mundo de narciso, temos pouco tempo para olhar em volta e avaliar quais as consequências de algumas das acções que praticamos, ou das opções que tomamos enquanto sociedade.
Se a vida humana é absoluta, o seu comentário tem toda a pertinência, mas se ela é relativa, isto é, dependente de uma qualificação fornecida/estabelecida pela sociedade, o seu comentário não tem sentido.
Eu tenho a minha opinião pessoal que não vem aqui para o caso, apenas quero realçar que, uma sociedade que definiu o momento de surgimento da vida e da morte, sobre critérios sociais, pode, perfeitamente, determinar quem pode ou não ser "viável".
Queríamos ser deuses e já, quase, que os imitamos, mais precisamente, "mimamos" o seu estatuto e comportamento.
A caixa de Pandora foi aberta faz já alguns anos, não nos podemos admirar do seus resultados directos e indirectos.
Narciso, de momento, triunfou.
Cumprimentos
João

SC disse...

Caro Professor,

Não me parece que neste tipo de decisões as pessoas se estejam acolocar no papel de Deus (seja o que isso signifique para cada um - quaquer coisa superior que decide a vida e a morte). Inclino-me a pensar que é uma decisão bem humana: gestão de recursos escassos. Portanto a aplicação do princípio da máxima utilidade.
Neste caso, o próximo fígado disponível irá para outra pessoa que quem lidou com as circunstâncias considera lhe dará maior utilidade.
Foi uma decisão de escolha do melhor destino de um bem, perfeitamente dentro das "competências" do "livre arbítrio" e não uma decisão de negação de um bem essencial à vida, que há que chegue para todos, essas sim da "responsabilidade" dos deuses.
Não se tratou de negar o ar que ele respirava. Tratou-se de escolher outro destinatário para "um" fígado.
Mas este assunto, que de uma forma mais geral lhe poderei chamar de "utilidade do acto médico", para além de ser um assunto apaixonante do ponto de vista intelectual, vai ter mesmo que ser enfrentado e discutido, na medida em que as "capacidades de intervenção" se vão tornando cada vez maiores, quase parecendo que se vão tornando ilimitadas, dando assim ao homem muitos dos poderes de "deus".
Pois é, e já estou quase em contradição com o meu argumento inicial!...

Jorge Lucio disse...

Caro Professor,
No que respeita aos resultados da sondagem, noto que o caso ocorreu no Reino Unido e aí os resultados destas são frequentemente algo "chocantes" para as nossas mentalidades.
No auge da recente crise financeira, em que se discutiam eventuais apoios publicos às pessoas que ficavam sem dinheiro para pagar as hipotecas das casas, uma boa maioria dos comentários dos leitores no site do "The Times" era de que "não se devia utilizar dinheiro dos contribuintes para apoiar pessoas que irresponsavelmente tinham contraído empréstimos, sem garantia de segurança de rendimentos".
É uma visão algo egoísta concordo, mas que também apela à seriedade pessoal, e que no que representa de afastamento do "Estado papá" também tem alguns méritos.
Este caso do jovem alcoólico é assustador em termos de sociedade, mas acredito que às vezes os médicos terão de fazer opções... Qual o doente que deve ser ligado à unica máquina de reanimação disponível: o idoso já muito doente com 85 anos, ou o jovem que foi atropelado mas tem boas hipóteses de sobrevivência condigna?
Se para os familiares da vítima houve insensibilidade, será que a sociedade deve reservar um bem único e de valor incalculável como um orgão, em alguém que nunca mostrou interesse no valor da vida, ou antes guardá-lo para alguém que de facto não teve culpa numa sua situação de doença?

Massano Cardoso disse...

Pois é!
Os recursos são escassos. Se a opção da escolha de A ou de B for por motivos técnicos, maior viabilidade num do que noutro, ou que a utilização do órgão vai ser um desperdício devido à própria situação clínica, então, admito a escolha. Mas, meus caros, guardar ou privilegiar para quem “não tem culpa” é um perigo que, cuidado, poderá atingir qualquer um de nós e alongar-se para outras situações que à partida não têm nada a ver com este caso, mas que podem ser fontes de discriminação inimagináveis.
O médico não julga ninguém, o médico absolve todos.

patrício disse...

Se me permite, não concordo com o seu argumento: Os médicos portar-se-ia como seres divinos se abrissem uma excepção e contornassem as regras pré-establecidas.
É com casos casos concretos, como este, que se toma noção das limitações ou contradições de certas regras, mas a sua modificação para poder alojar o caso concreto terá que ter uma fundamentação abstracta para que esta evolução cubra casos futuros.
Ora, querer viver é um forte argumento mas comum a todos os pacientes em lista de espera, logo irrelevante para decidir uma excepção.
O rapaz tinha 22 anos, filho de pais separados e alcoolico? São estas as condições para abrir uma excepção? Se fosse eu outro qualquer paciente que em lista de espera diria que não.
Porque no fundo o que me levou a escrever este comentário é que me incomoda com a visão de que só actos singulares de redenção e de excepção nos faz humanos e melhores humanos. Disso discordo profundamente. Porque nos faz-nos ser injustos. Injustos para a soma dos outros casos particulares.
Cumprimentos.
Patricio

Bartolomeu disse...

Caros amigos, e se o imperativo transplante fosse, em lugar de um fígado, um coração. Os critérios moralistas basear-se-iam no comportamento romântico, ou não do paciente? Ser-lhe-ia exigido que permanecesse 6 meses sem se apaixonar?
E se se tratasse de um transplante da córnea... seria exigido ao paciente que se mantivesse cego durante 6 meses?
Talvez o caso que o Caro Professor relata e coloca à consideração do nosso ponto de vista tenha tido como palco os serviços de saúde públicos, porque provávelmente nos serviços de saúde privados, aquela selecção não teria acontecido. Mas, penso que o banco nacional de orgãos disponíveis para transplante, seja um só. Se não estiver errado na minha suposição, o stock de orgãos será comum ao serviço público e ao privado...
se assim for... existe a dúvida relativa à ética dos "sensores"...

Adriano Volframista disse...

Caro Professor

A vida e a morte são conceitos absolutos ou não? Isto é, são elementos que estão fora da definição da sociedade em que um se insere ou não?
Considero que sim.
No caso em concreto, a opção só poderia ser fundamentada na compatibilidade dos orgãos e outros elementos clínicos que, de acordo com o estado da arte reune as melhores condições de êxito, porque esta avaliação assegura o sucesso da intervenção e na ordem de chegada na lista, porque apenas esta evita o arbítrio humano (social neste caso) sobre algo que não o é.
O que não se pode aceitar é o arbítrio, alicerçado ou possível pelas capacidades tecnológicas: Isto serve para a vida, como para a morte.
Porque o critério de chegada: porque a "capacidade" de transplantação de um orgão tem uma janela muito apertada e é, em minha opinião a única "métrica" que escapa ao arbítrio humano.
Cumprimentos
João
Cumprimentos

Tonibler disse...

O caso parece-me "na linha", se retirarmos o folclore envolvente da sondagem e da luta da mãe, que muitas vezes provoca ruído em volta da coisa. A questão é se não podemos dizer que a decisão dos médicos é científica, face às evidências do comportamento passado, e não moralista?

Se em vez de alcoólico, o jovem fosse canceroso, a decisão dos médicos não teria sido a mesma? E no entanto, o cancro também é uma doença.
Não sei se me expliquei bem, mas não vejo de imediato que a decisão médica tenha sido de ignorar o alcoolismo como doença ou de considerar que o alcoolismo estaria numa fase demasiado avançada.

Também eu abomino toda a forma de moralismo e quero acreditar que um conjunto de médicos de gente com profunda formação científica, (porque uma decisão destas deve ter sido num colectivo nada jovem) dificilmente se deixaria levar por moralismos.

Massano Cardoso disse...

Caro Tonibler
Se acha que foi assim, então fiquemos tranquilos.
Recordo que o meu primeiro post na Quarta República foi sobre "Harry Elphick", publicado em 13 de Abril de 2005 (http://quartarepublica.blogspot.com/2005/04/harry-elphick.html), no qual teci considerações sobre um outro caso clínico, neste caso uma pessoa que não teve acesso a um by pass coronário por ser fumador. Depois, recordo ter escrito mais dois, pelo menos, "Cuidado! Eles não brincam" em 10 de Fevereiro de 2007 (http://quartarepublica.blogspot.com/2007/02/cuidado-eles-no-brincam.html) e "Doença e Pecado" /http://quartarepublica.blogspot.com/2007/06/doena-e-pecado.html).
Este assunto, não é de hoje e tem sido debatido, a vários níveis. Há uma corrente que quer, por exemplo, que quem adoeça por "culpa" própria a ter de pagar mais, sobretudo o "excedente". Também lhe posso afiançar que quem está por detrás destas iniciativas são séniores, de cabelos brancos e responsáveis.
Quanto ao folclore? Neste caso até ajuda, porque é um "pretexto", embora doloroso, de manter viva uma certa contestação a correntes totalitárias na área da saúde. Skrabanek foi um dos principais activistas a denunciar esta tendência. Sendo assim, o melhor é estar atento, porque nunca se sabe o que vem a seguir...

Adriano Volframista disse...

Caro Tonibler

Como deve compreender a decisão dos médicos cinge-se ao lado clínico: tem o doente condições, de acordo com o estado actual da arte, para receber um orgão de terceiro com êxito?
Não compete nem a médicos nem a ninguêm, escolher entre dois doentes em igualdade de circunstâncias, salvo optando pelo que chegou primeiro.
Tanto faz que o doente seja canceroso, sidoso, biliososo ou qualquer outro "oso", não compete aos homens, (nem à sociedade) usar critérios que possam ser facilmente alteráveis, isto é, re definidos de acordo com a "moral" dominante.
Ser um alcoólico crónico com 23 anos não é critério para aferir a "viabilidade" futura de vida, mas também não o é ter 85 anos.
Narciso apenas olha ao seu espelho e isso, como nota o Prfo Massano não é admissível, dado que, se fosse o filho já desejariam outra decisão.
Cumprimentos
João

Suzana Toscano disse...

Eu concordo com o Prof. Massano, fico chocada e muito preocupada com estas “avaliações morais”que ultrapassam em muito o que devia ser o papel de um médico, ainda que também lhes seja pedida a gestão de recursos escassos. De acordo com o relato, não se tratou de uma situação de escolha entre dois casos concretos terminais – ou morre um, ou morre outro, - e, mesmo que fosse, essa escolha não podia basear-se numa situação de comportamento hipotético, se o jovem iria ou não “merecer” o fígado deixando de ser alcoólico. A escolha devia ser objectiva e actual, se o rapaz iria sobreviver ou não, independentemente das garantias do seu comportamento, ou seja, da chantagem. Se assim não fosse, então todos os “beneficiários” teriam uma obrigação moral implícita de nunca prevaricar, garantias que, obviamente, nenhum médico tem o direito de pedir. De acordo com os factos que aqui temos, tratou-se de uma “punição”, de uma sentença, houve um abuso de imposição moral, tal como nos casos dos doentes cardíacos que fumam ou dos que têm cancro nos intestinos porque não seguem uma dieta, ou dos obesos que são gulosos, etc. Uma infinidade de juízos de valor intoleráveis quando se trata de decidir vives ou morres.
E, já agora, ao Jorge Lúcio, cujo regresso activo ao 4r saúdo com muita amizade, esses apoios às famílias endividadas não foram, a meu ver, determinados pela generosidade dos concidadãos, absolvendo de uma fraqueza, mas sim uma imposição destinada a manter alguma confiança nos mercados imobiliários. Se ninguém arriscasse um empréstimo daqui para diante, onde iriam parar os bancos, os construtores, os fornecedores? Por isso num caso o objectivo foi ameaçar os que não se “portam bem”, noutro foi estimular o endividamento, fazendo as pessoas acreditar que, em caso de azar generalizado, a culpa não foi deles e merecem “perdão”.

Oscar Maximo disse...

Estar 6 meses sem beber parece-me um critério suficientemente objectivo, também exigido para tratar a hepatite C (tratamento longo, caso da minha mulher). Não aceitar "cunhas" para subverter as regras é louvável em todo o lado, menos neste país.