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quinta-feira, 19 de julho de 2012

Bernardo Torres


Na semana passada escrevi um pequeno texto intitulado "Dois loucos" que coloquei no "O Quarto da República". Um pequeno episódio, um entre muitos que vou colecionando com enorme prazer. Hoje sentei-me no mesmo sítio, um pouco mais cedo do que é habitual. Pensei, o meu colega louco ainda não chegou, às tantas não vai aparecer. Desliguei-me desta ideia e pus-me a ler, gozando a saborosa brisa. Eis que, silenciosamente, ao contrário da semana passada, apareceu o meu colega de escrita, transportando a sua velha pasta de cabedal, boné e uma gravata muito garrida. Entrou no cemitério. Fui atrás dele para ver o que ia fazer. Espirrou alto e em bom som acompanhado de um sonoro porra! estou constipado ou quê? Para em frente de uma campa cheia de flores, testemunha de um funeral recente. Olha, torna a olhar, cheira, torna a cheirar, sai mais um espirro valente e remata, hum, aqui houve funeral, pois houve, sim senhor. Calado, olha com muita atenção e eu não consegui descortinar o que é que se estaria a passar naquela mente. Começa a andar em passo acelerado, e aí vai ele ao longo dos corredores mortuários como se fosse um fiscal dos mortos. Sem parar, cabeça baixa, ia-se tornando cada vez mais pequeno naquela imensidão do vazio Fiquei a olhá-lo à distância. Fiz os cálculos, ainda vai demorar um bocado, vou-me embora, são quase horas de retomar a minha atividade. Passei por um talhão de antigos combatentes, olhei para as campas aquecidas pelo sol, ornamentadas por diferentes tipos de cruzes, até que me chamou a atenção um túmulo encimado por uma chama. Aproximei-me e comecei a examinar aquele pequeno monumento erigido à memória de Bernardo Torres. Desconhecia na altura quem teria sido, mas, pelos dizeres desenhados, "impoluto caráter, liberal convicto e republicano indefectível", conclui estar perante um pensador livre com atuação cívica importante na cidade. Falecido a 21 de julho de 1921. Na coluna há um espaço para um medalhão, mas estava vazio. Olhei para o chão e descortinei na base uma interessante figura em cerâmica praticamente intacta, embora nos bordos houvesse alguma perda de substância. Teria caído sem se fragmentar. Estava ali à minha disposição. Peguei no medalhão e contemplei-o. Belo, sem dúvida. A figura impressionou-me, e fiquei com curiosidade em saber quem teria sido esta personalidade. Fiz umas breves pesquisas e concluí que foi uma notável figura de Aveiro, presidente da câmara, administrador de jornais, filantropo, em suma, alguém que em tempos terá contribuído para a sociedade. Imagino quantas palavras, quantos discursos e quantos elogios lhe foram dirigidos, para não falar das juras em perpetuar a sua memória como exemplo aos futuros cidadãos. Coloquei novamente o medalhão no chão, embora me apetecesse recolocá-lo no sítio devido.
Olhei em redor e não vi ninguém, nem mesmo o meu companheiro louco, que deveria andar ainda a deambular no seu ritual passeio entre os mortos.
“Mors ultima ratio” (A morte é a razão final de tudo). Está bem, pode ser, mas não era preciso exagerar tanto...

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Um dia, dediquei a um amigo com quem tinha o enorme prazer de discutir ideias e reflexões, um poema que se iniciava com esta quadra:

Fico feliz quando encontro
Um companheiro de boa verve.
Que solta, vinda de dentro
A palavra que lhe ferve.

Pode ferver-nos a palavra por dentro, mas se soubermos utiliza-la e coloca-la no sítio certo, como o caro Amigo tão magistralmente o faz, então, a palavra transforma-se e torna-se útil, balsâmica e até elevadora.
É o caso, em mais este post, que nos conduz à reflexão e nos convida a pensar em que somos, o que somos, porque somos e sobretudo; se somos.
Obrigado, Sr. Professor.

jotaC disse...

Pensar a morte como sendo a "razão final de tudo", parece-me ser, uma atitude redutora do próprio sentido da vida. E a fazer fé na adjectivação usada na lápide do emérito cidadão, estou convicto que deu todo o sentido à sua vida.
Mas concordo, também, que não era preciso tanto!...