Na semana passada escrevi um pequeno texto intitulado "Dois loucos" que coloquei no "O Quarto da República". Um pequeno episódio, um entre muitos que vou colecionando com enorme prazer. Hoje sentei-me no mesmo sítio, um pouco mais cedo do que é habitual. Pensei, o meu colega louco ainda não chegou, às tantas não vai aparecer. Desliguei-me desta ideia e pus-me a ler, gozando a saborosa brisa. Eis que, silenciosamente, ao contrário da semana passada, apareceu o meu colega de escrita, transportando a sua velha pasta de cabedal, boné e uma gravata muito garrida. Entrou no cemitério. Fui atrás dele para ver o que ia fazer. Espirrou alto e em bom som acompanhado de um sonoro porra! estou constipado ou quê? Para em frente de uma campa cheia de flores, testemunha de um funeral recente. Olha, torna a olhar, cheira, torna a cheirar, sai mais um espirro valente e remata, hum, aqui houve funeral, pois houve, sim senhor. Calado, olha com muita atenção e eu não consegui descortinar o que é que se estaria a passar naquela mente. Começa a andar em passo acelerado, e aí vai ele ao longo dos corredores mortuários como se fosse um fiscal dos mortos. Sem parar, cabeça baixa, ia-se tornando cada vez mais pequeno naquela imensidão do vazio Fiquei a olhá-lo à distância. Fiz os cálculos, ainda vai demorar um bocado, vou-me embora, são quase horas de retomar a minha atividade. Passei por um talhão de antigos combatentes, olhei para as campas aquecidas pelo sol, ornamentadas por diferentes tipos de cruzes, até que me chamou a atenção um túmulo encimado por uma chama. Aproximei-me e comecei a examinar aquele pequeno monumento erigido à memória de Bernardo Torres. Desconhecia na altura quem teria sido, mas, pelos dizeres desenhados, "impoluto caráter, liberal convicto e republicano indefectível", conclui estar perante um pensador livre com atuação cívica importante na cidade. Falecido a 21 de julho de 1921. Na coluna há um espaço para um medalhão, mas estava vazio. Olhei para o chão e descortinei na base uma interessante figura em cerâmica praticamente intacta, embora nos bordos houvesse alguma perda de substância. Teria caído sem se fragmentar. Estava ali à minha disposição. Peguei no medalhão e contemplei-o. Belo, sem dúvida. A figura impressionou-me, e fiquei com curiosidade em saber quem teria sido esta personalidade. Fiz umas breves pesquisas e concluí que foi uma notável figura de Aveiro, presidente da câmara, administrador de jornais, filantropo, em suma, alguém que em tempos terá contribuído para a sociedade. Imagino quantas palavras, quantos discursos e quantos elogios lhe foram dirigidos, para não falar das juras em perpetuar a sua memória como exemplo aos futuros cidadãos. Coloquei novamente o medalhão no chão, embora me apetecesse recolocá-lo no sítio devido.
Olhei em redor e não vi ninguém, nem mesmo o meu companheiro louco, que deveria andar ainda a deambular no seu ritual passeio entre os mortos.
“Mors ultima ratio” (A morte é a razão final de tudo). Está bem, pode ser, mas não era preciso exagerar tanto...
“Mors ultima ratio” (A morte é a razão final de tudo). Está bem, pode ser, mas não era preciso exagerar tanto...
2 comentários:
Um dia, dediquei a um amigo com quem tinha o enorme prazer de discutir ideias e reflexões, um poema que se iniciava com esta quadra:
Fico feliz quando encontro
Um companheiro de boa verve.
Que solta, vinda de dentro
A palavra que lhe ferve.
Pode ferver-nos a palavra por dentro, mas se soubermos utiliza-la e coloca-la no sítio certo, como o caro Amigo tão magistralmente o faz, então, a palavra transforma-se e torna-se útil, balsâmica e até elevadora.
É o caso, em mais este post, que nos conduz à reflexão e nos convida a pensar em que somos, o que somos, porque somos e sobretudo; se somos.
Obrigado, Sr. Professor.
Pensar a morte como sendo a "razão final de tudo", parece-me ser, uma atitude redutora do próprio sentido da vida. E a fazer fé na adjectivação usada na lápide do emérito cidadão, estou convicto que deu todo o sentido à sua vida.
Mas concordo, também, que não era preciso tanto!...
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