Fui sempre permeável a lendas de mouros e mouras. Em pequeno, no calor da noite, ao mesmo tempo que saboreava a frescura da brisa, e me deliciava com o canto das cigarras, ouvia, embevecido, lendas e mais lendas. Tudo sob o olhar da Lua de Agosto. Ainda hoje, quando a contemplo, associo-a a encantamentos de mouras. Nem mesmo o facto da terra onde nasci ter o nome de uma abadessa, santificada, que tomou a vida nas suas mãos, ato repetido por todas as suas freiras, aquando da invasão de Almançor e devido à ameaça de violação por parte de Aben Abdallah, conseguiu ou consegue roubar o fascínio que perdura até ao presente. A memória tem destas coisas, desperta com muita facilidade da letargia de décadas quando é confrontada com relatos comoventes como foi o caso de alguém que viveu, e presumo que continua a viver, segundo o seu relato, com a presença de uma estranha e solitária lápide tumular num canto do adro da igreja da sua terra. A sepultura do mouro. Naquele lugar dorme alguém que, na era manuelina, apesar de se ter convertido ao cristianismo, não lhe foi dada a “honra” de partilhar o interior da igreja, onde jazem os homens nobres da época. E, no entanto, foi mais nobre, mais trabalhador, mais humano, mais rico e mais generoso que os demais. Pergunto: - Por que não terá tido o privilégio de repousar no interior? Talvez por não terem acreditado que tivesse adotado o Deus dos cristãos, ou abjurado o seu Alá. Às tantas nem deve ter sido por causa disso. Talvez a inveja ou desprezo pelas suas benfeitorias fossem as verdadeiras razões.
As marcas do passado do mouro estão visíveis no incómodo do articulista. Face ao abandono, e à solidão do túmulo, solicita aos responsáveis que, ao menos uma vez por ano, coloquem uma vela e algumas flores na sua pedra tumular. Para quê? Pergunto. Está ao ar livre, decerto não andam a pisá-lo constantemente, ao invés dos seus contemporâneos no interior da igreja, vê a Lua e o Sol e sente as folhas amarelo avermelhadas a atapetá-lo todos os anos.
A morte atirou-o para aquele canto. Foi a expectativa da morte que lhe deverá ter proporcionado a realização das suas benfeitorias e a necessidade de cultivar o humanismo. Sem a presença da morte o homem não teria pintado as paredes das cavernas, nem dançaria para os deuses, olhado para as estrelas ou jogado com a geometria. Não teria vivido em sociedade e nem educado as crianças. O culto dos mortos e a construção das necrópoles, sobre as quais nasceram as metrópoles, revelam o efeito criativo da morte nos seres humanos. Mas não são só os homens que morrem, também as civilizações e as religiões. Morrem inesperadamente como qualquer um de nós. O terceiro tipo de morte é global. O homem mata, e já provou que é capaz de o fazer à escala global, quando libertou o inferno das bombas nucleares. Uma coisa é caminhar em direção à morte ou esperar que esta venha na nossa direção para nos libertar, outra é o homem personificar a própria morte, negando o desejo da existência aos demais. Temos que morrer, amanhã, nos próximos três minutos, ou daqui a algum tempo, de doença, de acidente ou de fadiga, sim porque sofrer também cansa.
Há uma quarta morte sem a qual não poderíamos viver. Diariamente, milhões de células morrem de forma programada, para dar lugar a novas e saudáveis células. Poeticamente utilizaram uma palavra grega para designar esta forma, que significa queda das folhas no outono, apoptose. Suicidam-se. Ainda bem, porque quando não se suicidam, agarrando-se à vida, acabam por provocar doença e sofrimento.
O mouro cumpriu a sua missão. A sua morte deu vida e continua a dar num contínuo interessante. Quem diria que, séculos depois de ter sido colocado naquele canto, longe dos “nobres” do interior do templo, conseguisse ainda encantar algumas almas.
O outono está a chegar e decerto que inúmeras folhas amarelo avermelhadas quedar-se-ão sobre a sua lápide, testemunhando a “apoptose”, fonte da vida e de um encantamento que perdura.
As marcas do passado do mouro estão visíveis no incómodo do articulista. Face ao abandono, e à solidão do túmulo, solicita aos responsáveis que, ao menos uma vez por ano, coloquem uma vela e algumas flores na sua pedra tumular. Para quê? Pergunto. Está ao ar livre, decerto não andam a pisá-lo constantemente, ao invés dos seus contemporâneos no interior da igreja, vê a Lua e o Sol e sente as folhas amarelo avermelhadas a atapetá-lo todos os anos.
A morte atirou-o para aquele canto. Foi a expectativa da morte que lhe deverá ter proporcionado a realização das suas benfeitorias e a necessidade de cultivar o humanismo. Sem a presença da morte o homem não teria pintado as paredes das cavernas, nem dançaria para os deuses, olhado para as estrelas ou jogado com a geometria. Não teria vivido em sociedade e nem educado as crianças. O culto dos mortos e a construção das necrópoles, sobre as quais nasceram as metrópoles, revelam o efeito criativo da morte nos seres humanos. Mas não são só os homens que morrem, também as civilizações e as religiões. Morrem inesperadamente como qualquer um de nós. O terceiro tipo de morte é global. O homem mata, e já provou que é capaz de o fazer à escala global, quando libertou o inferno das bombas nucleares. Uma coisa é caminhar em direção à morte ou esperar que esta venha na nossa direção para nos libertar, outra é o homem personificar a própria morte, negando o desejo da existência aos demais. Temos que morrer, amanhã, nos próximos três minutos, ou daqui a algum tempo, de doença, de acidente ou de fadiga, sim porque sofrer também cansa.
Há uma quarta morte sem a qual não poderíamos viver. Diariamente, milhões de células morrem de forma programada, para dar lugar a novas e saudáveis células. Poeticamente utilizaram uma palavra grega para designar esta forma, que significa queda das folhas no outono, apoptose. Suicidam-se. Ainda bem, porque quando não se suicidam, agarrando-se à vida, acabam por provocar doença e sofrimento.
O mouro cumpriu a sua missão. A sua morte deu vida e continua a dar num contínuo interessante. Quem diria que, séculos depois de ter sido colocado naquele canto, longe dos “nobres” do interior do templo, conseguisse ainda encantar algumas almas.
O outono está a chegar e decerto que inúmeras folhas amarelo avermelhadas quedar-se-ão sobre a sua lápide, testemunhando a “apoptose”, fonte da vida e de um encantamento que perdura.
2 comentários:
Magnífico texto, caríssimo Professor Massano Cardoso. Magnífico e desafiador.
Como é habitual, enconramos naquilo que escreve, não somente uma reflexão pessoal, como ainda um "rastilho" para que cada um inicie, ou encontre a sua própria reflexão.
Pessoalmente, encontro na necessidade humana de « pintar as paredes das cavernas, dançar para os deuses, olhar para as estrelas e jogar com a geometria» um desejo de eternidade. Penso até que desde sempre o homem entendeu o sentido da vida e consequentemente o da eternidade, sabendo que o fenómeno da morte é de todo imperscindível para que o da vida se suceda.
Este texto recordou-me e reportou-me aquele outro do seu livro «bíblia» "Chuva de Pássaros Mortos", intitulado "Pílulas Frei Galvão"! (adorei este ponto de exclamação) e ao parágrafo em que alude ao médico Garcia da Orta e ao julgamento aque foi sujeito, já depois da sua morte, assim como à condenação daquilo que do seu corpo restava, ao fogo "purificador" da inquisição...
Mesmo que fosse ateado pelo santo ofício, o fogo não perderia a qualidade de purificar... a alma?!
Logo, quando a lua subir e banhar o meu recanto com a luz que do sol reflecte, vou meditar acerca da condição humana.
;)
O Outono, ou o declínio de um ciclo de vida, é a altura em que se começa a olhar para o que deu fruto, para a força dos ramos que vão resistir ao Inverno e também para o que ficou na terra capaz de dar plantas novas, que renovem o espaço deixado pelas que chegaram ao fim.Interessa pouco, como diz neste belo texto, ficar dentro ou fora do recinto consagrado aos notáveis, o que conta é que a memória perdure pelo que foi possível fazer antes que as folhas se mudassem para vermelho ou castanho e percam força, caindo uma a uma para dar lugar aos novos rebentos. Mas às vezes a morte chega muito antes das células desistirem de se renovar, chega quando se fica simplesmente à espera dela, é talvez a quinta morte da sua lista, a que separa o corpo do espírito.
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