Não sei o que se está a passar. Começa a ser muito frequente as interpelações arrogantes por parte de doentes que exigem soluções para os seus problemas como se tivesse a obrigação de curar tudo e todos. Após os estudos necessários, que na maioria dos casos acabam por comprovar a benignidade da situação ou a ausência de problemas patológicos complexos, ouço, frequentemente, frases do género: - Oh doutor (o senhor caiu em desuso) tem que resolver o problema. Isto não pode continuar assim! Ao mesmo tempo, presenteiam-me com caras típicas dos cidadãos quando solicitam o livro de reclamações nas repartições públicas ou quando começam a refilar com o funcionário das finanças.
Tento explicar que o que está na base da situação são problemas de outras esferas, psicológica, social e laboral. Mas é difícil dizer isto, porque reagem, prontamente, com desprezo e desconfiança. Nem querem ouvir. Devem pensar que todos os problemas de saúde têm soluções na ponta da caneta ou na ponta do bisturi, recusando a que está na ponta da língua. Nem querem ouvir. Presumo que deve ser fruto de todas as informações sobre as conquistas na área da medicina e da biologia que dão a entender que tudo tem solução. Mas não é assim. Às tantas, penso: - Aqui estão bons clientes para o professor Bambo, para a medicina homeopática, para serem mesmerizados ou mesmo para irem à bruxa. E Deus queira que vão! Ao menos fico aliviado. Claro que, quando adoecem de verdade, acabam por voltar, mais humildes e mais recetivos aos conselhos.
Tentar explicar que são poucas as situações de cura, muitas as que são passíveis de controlo eficaz e outras, infelizmente, não controláveis, é muito complicado. Além deste fenómeno, realço, igualmente, a crescente negação face à morte. Ninguém, ou quase ninguém quer morrer. Veja-se o caso de um desabafo e ameaça de processar médicos por negligência (!) devido à morte da mãe aos 95 anos, vítima de pneumonia num hospital. – Veja lá doutor, deixaram-na morrer com uma pneumonia. Não a trataram devidamente. Vou processá-los. Até me arrepiei. Tudo isto no mesmo dia em que uma doutoranda - que está a fazer um trabalho no âmbito da prevenção quaternária, ou seja, como evitar as complicações dos atos médicos, já que se torna necessário proteger as pessoas das agressões, manipulações e comportamentos dos profissionais da saúde, tamanha é a “medicalização”, a “farmacolização” e automedicação induzida nos nossos dias -, me leu uma curta passagem de um livro que tinha acabado de adquirir. Tratava-se de um diálogo ocorrido em 2050. Um senhor, de 95 anos, foi ao médico que lhe disse que tinha chegado àquela idade com muita saúde e em boa forma, graças à medicina, mas agora tinha de lhe dar uma má notícia, “tinha apenas seis meses de vida” e, por isso, deveria preparar os seus para o nefasto evento. O senhor, jovem de 95 anos, ficou triste e muito incomodado com a notícia. No entanto, ao ouvir o médico a dizer-lhe que havia ainda uma esperança, disparou: - Então posso continuar a viver? – Sim. Poder pode, desde que aceite sujeitar-se a uma transplantação do espírito. Não sei se fez ou não, porque estamos ainda em 2009. Quem chegar a 2050 que obtenha a resposta.
Para terminar, aconselho a leitura da novela “Ninguém desaparece completamente”, inserida no livro “Buracos Negros” de Lázaro Covadlo. Nesta obra, Adalberto Arisamendi começa por amputar o dedo grande do pé, a conselho do seu amigo, Manuel Arteaga, estudante de medicina, para escapar à tropa. Não só não escapou como começou a sofrer uma doença “gangrenosa” que, periodicamente, exigia amputação, quando sentia uma estranha comichão. Após a saída da vida militar, já sem um pé, para uma “companhia especializada em centralizar empresas de centralização”, o quadro agravou-se. Quando começava a sentir a coceira, tinha que amputar aquela parte do corpo. Adalberto Arisamendi passou a ser conhecido por senhor Arisamend-i, novo nome dado pelo chefe devido à falta do pé. Como não estava completo, separou-lhe a letra i do apelido. Mal a coceira voltava, novo corte, nova amputação, nova descida de andar, até chegar a ser chamado por senhor Ari e, depois de perder o apelido, passou a ser conhecido pelo primeiro nome, Adalberto, passando a Adal e acabando na cave como o senhor A, reduzido “à sua atividade intelectual, privada dos estímulos provenientes dos sentidos e das sensações do corpo”, limitando-se a perscrutar a "essência do tempo e a meditar sobre a verdadeira substância do Eu”. Sem quaisquer preocupações, a não ser quando sentiu o velho formigueiro a avançar pelo lobo frontal, a última coisa que lhe restava.
Não sei porquê mas começo a sentir uma coceira. Espero que não tenha nenhum significado em particular...
Salvador Massa
Tento explicar que o que está na base da situação são problemas de outras esferas, psicológica, social e laboral. Mas é difícil dizer isto, porque reagem, prontamente, com desprezo e desconfiança. Nem querem ouvir. Devem pensar que todos os problemas de saúde têm soluções na ponta da caneta ou na ponta do bisturi, recusando a que está na ponta da língua. Nem querem ouvir. Presumo que deve ser fruto de todas as informações sobre as conquistas na área da medicina e da biologia que dão a entender que tudo tem solução. Mas não é assim. Às tantas, penso: - Aqui estão bons clientes para o professor Bambo, para a medicina homeopática, para serem mesmerizados ou mesmo para irem à bruxa. E Deus queira que vão! Ao menos fico aliviado. Claro que, quando adoecem de verdade, acabam por voltar, mais humildes e mais recetivos aos conselhos.
Tentar explicar que são poucas as situações de cura, muitas as que são passíveis de controlo eficaz e outras, infelizmente, não controláveis, é muito complicado. Além deste fenómeno, realço, igualmente, a crescente negação face à morte. Ninguém, ou quase ninguém quer morrer. Veja-se o caso de um desabafo e ameaça de processar médicos por negligência (!) devido à morte da mãe aos 95 anos, vítima de pneumonia num hospital. – Veja lá doutor, deixaram-na morrer com uma pneumonia. Não a trataram devidamente. Vou processá-los. Até me arrepiei. Tudo isto no mesmo dia em que uma doutoranda - que está a fazer um trabalho no âmbito da prevenção quaternária, ou seja, como evitar as complicações dos atos médicos, já que se torna necessário proteger as pessoas das agressões, manipulações e comportamentos dos profissionais da saúde, tamanha é a “medicalização”, a “farmacolização” e automedicação induzida nos nossos dias -, me leu uma curta passagem de um livro que tinha acabado de adquirir. Tratava-se de um diálogo ocorrido em 2050. Um senhor, de 95 anos, foi ao médico que lhe disse que tinha chegado àquela idade com muita saúde e em boa forma, graças à medicina, mas agora tinha de lhe dar uma má notícia, “tinha apenas seis meses de vida” e, por isso, deveria preparar os seus para o nefasto evento. O senhor, jovem de 95 anos, ficou triste e muito incomodado com a notícia. No entanto, ao ouvir o médico a dizer-lhe que havia ainda uma esperança, disparou: - Então posso continuar a viver? – Sim. Poder pode, desde que aceite sujeitar-se a uma transplantação do espírito. Não sei se fez ou não, porque estamos ainda em 2009. Quem chegar a 2050 que obtenha a resposta.
Para terminar, aconselho a leitura da novela “Ninguém desaparece completamente”, inserida no livro “Buracos Negros” de Lázaro Covadlo. Nesta obra, Adalberto Arisamendi começa por amputar o dedo grande do pé, a conselho do seu amigo, Manuel Arteaga, estudante de medicina, para escapar à tropa. Não só não escapou como começou a sofrer uma doença “gangrenosa” que, periodicamente, exigia amputação, quando sentia uma estranha comichão. Após a saída da vida militar, já sem um pé, para uma “companhia especializada em centralizar empresas de centralização”, o quadro agravou-se. Quando começava a sentir a coceira, tinha que amputar aquela parte do corpo. Adalberto Arisamendi passou a ser conhecido por senhor Arisamend-i, novo nome dado pelo chefe devido à falta do pé. Como não estava completo, separou-lhe a letra i do apelido. Mal a coceira voltava, novo corte, nova amputação, nova descida de andar, até chegar a ser chamado por senhor Ari e, depois de perder o apelido, passou a ser conhecido pelo primeiro nome, Adalberto, passando a Adal e acabando na cave como o senhor A, reduzido “à sua atividade intelectual, privada dos estímulos provenientes dos sentidos e das sensações do corpo”, limitando-se a perscrutar a "essência do tempo e a meditar sobre a verdadeira substância do Eu”. Sem quaisquer preocupações, a não ser quando sentiu o velho formigueiro a avançar pelo lobo frontal, a última coisa que lhe restava.
Não sei porquê mas começo a sentir uma coceira. Espero que não tenha nenhum significado em particular...
Salvador Massa
4 comentários:
Não desapareça por favor, caro Professor SALVADOR MASSANO CARDOSO!!!
O Senhor é dos já raros Homens completos que o país ainda possui.
Não me obrigue a pedir o livro de reclamações!!!
;))
De tanto nos empurrarem a cabeça para debaixo de água, começamos a aprender a respirar debaixo de água...
Será que nos falta aprender a morrer, dentro de um Sistema de Saúde insensível à Vida dos doentes e até insensível à Vida dos Médicos e outros profissionais de Saúde... ?
Caro Professor, temo que a coceira aumente, enquanto houver "silêncios" e "caixas de pandora" por abrir.
Por enquanto, estamos todos - doentes e profissionais de saúde - do mesmo lado.
Do lado, da Vida.
Mas também do lado da Dor e da Perda .... incompreendidas.
Como eu gosto de ler o que escreve, Professor, mesmo que assine só com um ..."S" ...
abraço grande
Salvador Manuel Correia Massano Cardoso. Assim, por inteiro. Sempre!...
Caro Prof. Massano Cardoso,desculpe mas acho que isso é uma grande fita, o meu amigo habituou-nos que a sua reacção aos incómodos não é a de amputar o que lhe desagrada mas olhá-la bem de frente e dar-lhe luta, por isso ponha lá o MassaNO que é o que faz sentido. Quanto à reacção dos seus doentes, também não percebo a sua estranheza, francamente. É que o treino colectivo hoje em dia é para se ocultar a verdade, não fazer diagnósticos aborrecidos que não permitam concluir por uma garantia absoluta da cura, com calendário de progresso ao lado. De preferência sem o doente se maçar.Não, isso já não se usa, o meu amigo confronta-se com doentes modernos e práticos, toma-lá-o-problema-passa-para-cá-a-receita, não gostam de quem lhes fala com prudência e alguma hesitação sobre o desfecho do caso. Vai ver que é tudo uma questão de modernidade...
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