Quando viajo, lanço-me no espaço sem grandes metas ou objetivos, aponto para uma área ou região e vou ao deus-dará na expectativa de ser contemplado pela fortuna e os deuses. Os universos paisagístico e cultural, e a diversidade dos hábitos humanos, são de tal ordem e riqueza que acabo sempre por tropeçar na beleza e não há nada melhor do que sentir as emoções despertadas pelo belo e o inesperado.
À noite, depois do jantar, demos um passeio pela cidade e esbarrámos num edifício setecentista muito bem conservado; numa tarjeta vertical podia ler-se: Centro de Arte Contemporânea. Já sei onde podemos ir amanhã de manhã. No dia seguinte, sob um calor infernal, visitámos o museu, que se prolongava nas traseiras em amplos e luminosos espaços de arquitetura moderna. A exposição de quadros e desenhos de Graça Morais é digno de contemplação. Nunca tinha tido oportunidade de os ver e fiquei agradavelmente surpreendido pela qualidade estética e pelo título, “Metamorfoses”. A temática das mulheres, recorrente, adquiriu uma estranha simbiose com insetos. Mulheres aparentemente estranhas desejosas de transmitir as suas vivências, esperanças e desesperos. Quadros fortes, alguns imponentes, figuras que incomodam, uma raridade capaz de exaltar o orgulho de um povo e que fariam as delícias de qualquer metrópole mundial. Quem diria que em Bragança iria encontrar este espaço. Foi então que recordei a sua apologia feita por um transmontano devidamente reconhecido na cidade, Adriano Moreira.
Sentei-me durante alguns momentos num pequeno auditório a ouvir a autora a dissertar sobre a sua vida e obra. Mulher de aldeia, mas o que me ficou marcado de forma intensa, como se fosse a imagem de um quadro seu, foi o título do documentário, "Na cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia". Com esta frase a autora pretende explicar o porquê da sua obra, com base num passado que a marcou, arca recheada de histórias, de emoções e sentimentos.
Aproximava-se entrementes a hora do almoço quando, espontaneamente, talvez influenciado pela frase da pintora, “história de uma aldeia”, propus ir até Rio de Onor, aldeia comunitária perdida nas montanhas que, com a aldeia vizinha espanhola, desafiou durante anos todas as convenções e leis que apartam povos e países. Não foi fácil chegar lá, e, receoso de não saber onde iríamos almoçar, decidimos parar numa pequena aldeia a meio do trajeto, e ainda bem, senão ainda nos arriscávamos a ficar sem almoço. Um pequeno restaurante xistoso e bem ajustado com um forno em plena atividade, o que me surpreendeu. Duas jovens simpáticas disseram o que havia. Escolhi uma costeleta e a minha mulher bacalhau. Foi fácil de perceber que o forno instalado no fundo da sala era para grelhar. Uma refeição deliciosa, sem ementa escrita, sem preços, apenas com boa educação e melhor comida. No final, um preço mais do que justo, ou melhor, ante a gigantesca posta e o bacalhau que dava para duas ou mais pessoas, um valor modesto. Não há nada melhor do que uma aldeia. Se "na cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia", então, pensei, “no estômago de um homem está o sabor de uma aldeia.” Chegámos a Rio de Onor, uma bela e pequena povoação. Atravessámos a fronteira sem saber onde é que estava a linha de corte, como se nunca tivesse existido. Andámos até esbarrar num pequeno povoado espanhol perdido naquela zona montanhosa, Puebla de Sanabria, que desconhecia, mas valeu a pena, porque se trata de uma joia, uma povoação medieval tão bem conservada que até chegámos a pensar que alguém tinha aberto um portal do tempo transportando-nos séculos atrás. Limpa, cuidada, sem portas de alumínio, nem francesices e respeitadora de regras, que, pelos vistos, foram bem instituídas e acatadas pelos responsáveis e cidadãos daquelas bandas. Valeu a pena este encontro que, infelizmente, não se observa entre nós. Foi então que, mais uma vez, me lembrei das palavras de Graça Morais, "quanta beleza não passa pela história de uma aldeia"? Ao fim do dia, enquanto desfrutava o sabor da noite numa esplanada, a minha memória começou a entrar em erupção. Somos frutos de muitas vivências, mas algumas, como as vividas nas aldeias, devido aos efeitos diretos das forças da natureza, adquirem algo intrinsecamente diferente e que, se não forem preservadas, criarão vazios quase que impossíveis de preencher. Algumas vão desaparecendo, mas outras poderão ser preservadas para que mais tarde se possa dizer "na cabeça de uma mulher e de um homem está a história de uma aldeia".
Que beleza! ser-se objeto de uma inesperada metamorfose, num dia muito quente de verão, nas terras perdidas de Trás-os-Montes...
À noite, depois do jantar, demos um passeio pela cidade e esbarrámos num edifício setecentista muito bem conservado; numa tarjeta vertical podia ler-se: Centro de Arte Contemporânea. Já sei onde podemos ir amanhã de manhã. No dia seguinte, sob um calor infernal, visitámos o museu, que se prolongava nas traseiras em amplos e luminosos espaços de arquitetura moderna. A exposição de quadros e desenhos de Graça Morais é digno de contemplação. Nunca tinha tido oportunidade de os ver e fiquei agradavelmente surpreendido pela qualidade estética e pelo título, “Metamorfoses”. A temática das mulheres, recorrente, adquiriu uma estranha simbiose com insetos. Mulheres aparentemente estranhas desejosas de transmitir as suas vivências, esperanças e desesperos. Quadros fortes, alguns imponentes, figuras que incomodam, uma raridade capaz de exaltar o orgulho de um povo e que fariam as delícias de qualquer metrópole mundial. Quem diria que em Bragança iria encontrar este espaço. Foi então que recordei a sua apologia feita por um transmontano devidamente reconhecido na cidade, Adriano Moreira.
Sentei-me durante alguns momentos num pequeno auditório a ouvir a autora a dissertar sobre a sua vida e obra. Mulher de aldeia, mas o que me ficou marcado de forma intensa, como se fosse a imagem de um quadro seu, foi o título do documentário, "Na cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia". Com esta frase a autora pretende explicar o porquê da sua obra, com base num passado que a marcou, arca recheada de histórias, de emoções e sentimentos.
Aproximava-se entrementes a hora do almoço quando, espontaneamente, talvez influenciado pela frase da pintora, “história de uma aldeia”, propus ir até Rio de Onor, aldeia comunitária perdida nas montanhas que, com a aldeia vizinha espanhola, desafiou durante anos todas as convenções e leis que apartam povos e países. Não foi fácil chegar lá, e, receoso de não saber onde iríamos almoçar, decidimos parar numa pequena aldeia a meio do trajeto, e ainda bem, senão ainda nos arriscávamos a ficar sem almoço. Um pequeno restaurante xistoso e bem ajustado com um forno em plena atividade, o que me surpreendeu. Duas jovens simpáticas disseram o que havia. Escolhi uma costeleta e a minha mulher bacalhau. Foi fácil de perceber que o forno instalado no fundo da sala era para grelhar. Uma refeição deliciosa, sem ementa escrita, sem preços, apenas com boa educação e melhor comida. No final, um preço mais do que justo, ou melhor, ante a gigantesca posta e o bacalhau que dava para duas ou mais pessoas, um valor modesto. Não há nada melhor do que uma aldeia. Se "na cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia", então, pensei, “no estômago de um homem está o sabor de uma aldeia.” Chegámos a Rio de Onor, uma bela e pequena povoação. Atravessámos a fronteira sem saber onde é que estava a linha de corte, como se nunca tivesse existido. Andámos até esbarrar num pequeno povoado espanhol perdido naquela zona montanhosa, Puebla de Sanabria, que desconhecia, mas valeu a pena, porque se trata de uma joia, uma povoação medieval tão bem conservada que até chegámos a pensar que alguém tinha aberto um portal do tempo transportando-nos séculos atrás. Limpa, cuidada, sem portas de alumínio, nem francesices e respeitadora de regras, que, pelos vistos, foram bem instituídas e acatadas pelos responsáveis e cidadãos daquelas bandas. Valeu a pena este encontro que, infelizmente, não se observa entre nós. Foi então que, mais uma vez, me lembrei das palavras de Graça Morais, "quanta beleza não passa pela história de uma aldeia"? Ao fim do dia, enquanto desfrutava o sabor da noite numa esplanada, a minha memória começou a entrar em erupção. Somos frutos de muitas vivências, mas algumas, como as vividas nas aldeias, devido aos efeitos diretos das forças da natureza, adquirem algo intrinsecamente diferente e que, se não forem preservadas, criarão vazios quase que impossíveis de preencher. Algumas vão desaparecendo, mas outras poderão ser preservadas para que mais tarde se possa dizer "na cabeça de uma mulher e de um homem está a história de uma aldeia".
Que beleza! ser-se objeto de uma inesperada metamorfose, num dia muito quente de verão, nas terras perdidas de Trás-os-Montes...
3 comentários:
Puebla de Sanabria
É verdade. Tendo ali passado há bem perto de dez anos, com vontade fiquei de ali voltar um dia.
Na portuguesa Rio de Onor, ao passar a pequena ponte sobre a ribeira, uma velhota em passo curto, que ao olhar para nós, retira duas peças de fruta do avental, para oferecer a minha mulher.
Para surpresa e agrado da minha mulher lisboeta.
Mas que bela indicação, estamos com planos de ir passear a Trás-os-Montes nos primeiros dias de Setembro, já marquei Rio de Onor e Puebla de Sanabria, também gosto imenso de ir andando a ver o que aparece no caminho, e há aldeias encantadoras, que parecem ter cristalizado o tempo (para mal de quem lá vive mas para espanto e maraviha de quem lá passa).E, em Bragança, não vi esse Museu, é altura de passar por lá também.
Um belo retrato de Trás-os-Montes. Admiro tal região pelas suas paisagens, pela simplicidade de vida, pelas pessoas, costumes e tradições... Algo incomparável à azafama das grandes cidades.
Não conheço Rio de Onor, mas visitei a Puebla de Sanabria, inclusivé a Lagoa de Sanabria, à poucos meses atrás e fiquei maravilhada. Como disse e muito bem, parecia ter-mos transposto "um portal do tempo transportando-nos séculos atrás". Foi uma visita bastante breve, mas bastou para abrir uma grande vontade de lá voltar, desta vez com mais tempo.
Enviar um comentário