Tenho andado muito absorvida com a leitura de “Linhas de Fractura”, do economista Raghuram Rajan (ed. Babel). Nesse livro, de uma leitura muito fácil, o autor faz um historial dos acontecimentos que considera mais relevantes nas últimas décadas ao nível do sistema financeiro e interpreta os sinais que foram sendo transmitidos e sistematicamente ignorados, até se chegar onde hoje estamos. Visto em retrospectiva, todas as peças do complicadíssimo puzzle parecem ganhar um sentido de fatalidade que legitima a pergunta que hoje tantos fazem “como foi possível”?
Quis o acaso que encontrasse à venda o filme baseado no livro “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, uma obra prima editada em 1950 e magistralmente passado ao cinema por Valério Zurlini. A leitura deste livro, ou ver o filme, ganham um significado muito impressivo na sequência da leitura do livro que acima refiro.
Dino Buzzati conta a história de um jovem tenente do então império austro húngaro, a quem é atribuído como primeiro posto o longínquo forte de Bastiano, no limite do deserto dos Tártaros.
O jovem oficial percorre a imensidão inóspita até chegar à muralha austera erguida sobre a pedras e virada para o nada, um forte construído na sequência de uma invasão acontecida há séculos mas depois da qual nada, absolutamente nada, fazia prever que voltasse a acontecer. Lá dentro, o regimento e os vários oficiais, todos provenientes da nobreza, cumpriam religiosamente os cerimoniais do exército e comportavam-se, formalmente, como se tudo o que fizessem fosse da maior importância, apesar de poucos acreditarem na utilidade da sua missão. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, os rituais cumpriam-se com toda a pompa e o regulamento – absurdo, se olhado o vazio da realidade - impunha-se com o rigor de quem não admitia correr o risco de cometer qualquer erro que pusesse em perigo a missão oficial que ali os conservava.
Todos, desde o general que, em Roma, consumia os seus charutos, até aos oficiais mais antigos que consumiam a sua dignidade na aparência enfatuada dos galões, fingiam cumprir uma missão patriótica guardando o bastião do inimigo que todos supunham ser imaginário. No entanto, insidiosamente, foram ganhando consistência algumas suspeitas de que o inimigo, afinal, existia, e que se preparava, lentamente, longinquamente, para atacar. Alguns sinais emergiram das brumas persistentes no horizonte do bastião, o receio foi alastrando mas, absurdamente, este facto causou o maior desconforto nas cadeias de comando. Todas as tentativas de alertar foram abafadas. Há um episódio fantástico em que o inimigo é claramente visto através de uns binóculos potentes, tornando-se pois impossível, a partir daí, ignorá-lo. A reacção dos que ditavam a estratégia militar foi ordenar que o binóculo fosse confiscado, proibindo qualquer instrumento que pudesse mostrar a evidência. Além disso, para reforçar a ideia de que não havia perigo nenhum, desguarneceram o forte, afastando os oficiais mais esclarecidos e capazes de assumir o comando, deixando lá apenas os oficiais de mais baixa patente e alguns soldados.
Tal como nos mostra R.Rajan em “Linhas de Fractura”, no Deserto dos Tártaros da nossa realidade todas as instituições que tinham como razão de ser regular os mercados, estar atentos aos abusos e impedir os desvarios que conduziram o mundo ocidental a este descalabro, mantiveram os seus rituais, invocaram regulamentos para encobrir a sua incapacidade de agir e esvaziaram-se de sentido útil, fechando os olhos ao perigo e desvalorizando os que, com binóculos primeiro, e com evidência depois,viam que o perigo avançava.
Convido-vos a ler os dois livros, ou a ver o filme. Para muitos que já sofreram os primeiros embates, as consequências foram as mesmas. Sonhos, ilusões, vidas inteiras dedicadas a uma causa que supunham válida e em defesa de um bem comum, tudo desperdiçado. No ocidente, nosso bastião, luta-se agora, desordenadamente, contra o inimigo que de repente se concretizou, na esperança de que não tenha sido tarde demais e haja ainda tempo de reunir esforços e encontrar comandantes que impeçam o descalabro.
Quis o acaso que encontrasse à venda o filme baseado no livro “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, uma obra prima editada em 1950 e magistralmente passado ao cinema por Valério Zurlini. A leitura deste livro, ou ver o filme, ganham um significado muito impressivo na sequência da leitura do livro que acima refiro.
Dino Buzzati conta a história de um jovem tenente do então império austro húngaro, a quem é atribuído como primeiro posto o longínquo forte de Bastiano, no limite do deserto dos Tártaros.
O jovem oficial percorre a imensidão inóspita até chegar à muralha austera erguida sobre a pedras e virada para o nada, um forte construído na sequência de uma invasão acontecida há séculos mas depois da qual nada, absolutamente nada, fazia prever que voltasse a acontecer. Lá dentro, o regimento e os vários oficiais, todos provenientes da nobreza, cumpriam religiosamente os cerimoniais do exército e comportavam-se, formalmente, como se tudo o que fizessem fosse da maior importância, apesar de poucos acreditarem na utilidade da sua missão. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, os rituais cumpriam-se com toda a pompa e o regulamento – absurdo, se olhado o vazio da realidade - impunha-se com o rigor de quem não admitia correr o risco de cometer qualquer erro que pusesse em perigo a missão oficial que ali os conservava.
Todos, desde o general que, em Roma, consumia os seus charutos, até aos oficiais mais antigos que consumiam a sua dignidade na aparência enfatuada dos galões, fingiam cumprir uma missão patriótica guardando o bastião do inimigo que todos supunham ser imaginário. No entanto, insidiosamente, foram ganhando consistência algumas suspeitas de que o inimigo, afinal, existia, e que se preparava, lentamente, longinquamente, para atacar. Alguns sinais emergiram das brumas persistentes no horizonte do bastião, o receio foi alastrando mas, absurdamente, este facto causou o maior desconforto nas cadeias de comando. Todas as tentativas de alertar foram abafadas. Há um episódio fantástico em que o inimigo é claramente visto através de uns binóculos potentes, tornando-se pois impossível, a partir daí, ignorá-lo. A reacção dos que ditavam a estratégia militar foi ordenar que o binóculo fosse confiscado, proibindo qualquer instrumento que pudesse mostrar a evidência. Além disso, para reforçar a ideia de que não havia perigo nenhum, desguarneceram o forte, afastando os oficiais mais esclarecidos e capazes de assumir o comando, deixando lá apenas os oficiais de mais baixa patente e alguns soldados.
Tal como nos mostra R.Rajan em “Linhas de Fractura”, no Deserto dos Tártaros da nossa realidade todas as instituições que tinham como razão de ser regular os mercados, estar atentos aos abusos e impedir os desvarios que conduziram o mundo ocidental a este descalabro, mantiveram os seus rituais, invocaram regulamentos para encobrir a sua incapacidade de agir e esvaziaram-se de sentido útil, fechando os olhos ao perigo e desvalorizando os que, com binóculos primeiro, e com evidência depois,viam que o perigo avançava.
Convido-vos a ler os dois livros, ou a ver o filme. Para muitos que já sofreram os primeiros embates, as consequências foram as mesmas. Sonhos, ilusões, vidas inteiras dedicadas a uma causa que supunham válida e em defesa de um bem comum, tudo desperdiçado. No ocidente, nosso bastião, luta-se agora, desordenadamente, contra o inimigo que de repente se concretizou, na esperança de que não tenha sido tarde demais e haja ainda tempo de reunir esforços e encontrar comandantes que impeçam o descalabro.
10 comentários:
Poderosa alegoria, cara Suzana, para além do texto deliciosamente bem escrito, mas isso já é habitual na Suzana.
De facto, cada vez mais o politicamente correcto impera e há muito chegou à regulação. Os reguladores deixaram de pensar no fim e objecto da regulação, deixaram de regular, para inventar normas e regulamentação complexa apenas para defesa própria. Eles sabiam e sabem que o inimigo teme combates frontais, mas é hábil em desmontar e passar por entre a floresta de leis ambíguas, decretos, posturas e regulamentos que nem os próprios reguladores sabem interpretar. Refugiam-se na burocracia, sem passarem à acção e justificam a sua existência cada vez com mais burocracia. Falou do sistema financeiro, e os reguladores têm sido dos que mais desconfiança têm lançado sobre o sistema. Substituíram a prevenção discreta e acção musculada pela devassa pública e pela inacção. Primeiro foram os stress tests à Banca para as gentes ficarem descansadas. Menos de um ano depois, e sem nada de novo ter sucedido, novos stress tests e as gentes passaram a desconfiar. Meros dois meses passados e está em curso uma nova investigação aos Bancos portugueses, como se de nada valessem os procedimentos anteriores. Se havia mal no sistema, a palavra de ordem seria actuar. Se não havia mal no sistema, a palavra de ordem seria parar. No final, a palavra de ordem é defender o castelo, não o castelo onde se abriga a cidade, mas a torre onde se abrigam os reguladores. Portugueses e estrangeiros, do FMI ou do BCE ou da UE.
Cara Suzana, muito obrigado por este seu texto.
Sabe, por educação, formação e caracter, sempre fui muito realista. Agourento chamaram-me muitos. Mas, enfim, sou assim, não gosto de poesia e não consigo deixar de olhar para o que é como é, separando totalmente as minhas emoções, desejos, anseios, o que for, da realidade e da forma como a analiso. Daqui que este seu texto me tenha sabido como uma lufada de ar fresco. Talvez, talvez como ressaca dos tempos que atravessamos, fique o realismo e se ponham no caixote do lixo o politicamente correcto, os fufus e gaitinhas com que se tenta embelezar a realidade, os eufemismos, os paninhos quentes, a primazia do parecer que é em relação ao que realmente é. Coisas que nunca deviam ter existido, enfim.
Obrigado por este seu texto! :)
A reflexão sobre os factos históricos, mesmo que recentes, conduz-nos inexorávelmente a um raciocínio: A vontade dos homens é volátil.
Se n'um determinado tempo é atribuido valor a certas qualidades, n'outro, é atribuído a qualidades diferentes, ou até, opostas às primeiras.
Se numa determinada época, o futuro é visto e entendido como algo a construír sobre bases sólidas, inabaláveis, noutra, o futuro quer-se imediato, mesmo que frágil e solúvel num ganho insustentável.
Assim têm sido os últimos tempos, com os resultados inequívocos que demonstram economias, governos e sociedades em pleno processo de desmoronamento acelerado.
Os registos históricos, dão-nos contas de outras crises passadas, que foram resolvidas pela vontade dos homens.
No entanto, doi perceber que um tempo se desperdiçou e que desse tempo, aquilo que resta, são destroços. Destroços de algo que em termos humanos poderia ter sido grandioso. O conhecimento aumentou exponencialmente, graças ao desenvolvimento nas comunicações e a sua rapidez, que possibilitaram à humanidade o contacto em tempo real e a partilha de informação, mesmo que a longa distância.
O mundo, hoje, está já ali. Podemos falar com um chinês que se encontra do outro lado do mundo, como quem chega à janela de uma viela e fala com a vizinha da casa em frente. Mas na verdade, estamos a uma eternidade de nos conseguirmos entender e de perceber que não caminhamos no sentido que convém à humanidade... osentido da auto-destruição.
Suzana
Gostei imenso do seu texto. Duas belas sugestões que vou aproveitar para ler neste tempo ainda um pouco sossegado de verão.
A pergunta "como foi possível" chegarmos onde chegámos leva-me a perguntar se, ainda assim, sabemos que futuro queremos ter e o que temos de fazer para o conseguir. O que é que vai acontecer? Que nova ordem se vai instalar? É que olhando para trás apontamos os dedos aos erros feitos, havendo aparentemente um consenso alargado, mas parece que não somos capazes de os corrigir e fazer diferente. Será que estamos todos de acordo sobre quem é o "inimigo" e sobre a necessidade de unirmos esforços, aceitando cedências - pelo menos aqueles que ainda têm condições para as fazer - e compromissos para cumprir?
Uma nova ordem ou um novo equilíbrio, como lhe quisermos chamar, estará a emergir. Alguém sabe para onde vamos?
Cara Drª Margarida; de acordo «sobre quem é o "inimigo"» não estamos de certeza. Basta ouvirmos os nossos políticos e comentadores, para chegarmos fácilmente a essa triste conclusão.
Quanto à necessidade de unirmos esforços, aceitando cedências... penso que: enquanto não formos unânimes na identificação do nosso verdadeiro inimigo, nunca estaremos preparados para eles (esforços). A menos que nova ditadura, como já aconteceu, ocasionada por motivos idênticos, se imponha...
Caro Bartolomeu, primeiro, interessante reflexão no seu comentário das 11h23. Realmente a humanidade tende a um certo utopismo de pensamento. Em certa medida os tempos que vivemos fazem-me lembrar os tempos que se seguiram à Grande Guerra. Em segundo lugar, o último parágrafo do seu comentário anterior, um novo período de regime totalitário. O meu caro confrade comentador ve-lo-á. Aponte para aí entre 2020-25 como o seu início. Como máximo!!
Bom, caro Zuricher... a ditadura apoiada no capital financiado, que tolhe a autonomia governativa dos estados, essa começou ha ja muito tempo.
O mistério é que consegue manter-se inalterada, sem que tome conta definitivamente dos governos.
Convem-lhe assim, porque não precisa de se impôr corporalmente, o que me leva a concluir que nesta época, os governos, são testas-de-ferro assumidos, ao serviço do capital.
Contra isto, batatas!
Caro Bartolomeu, não me refiro ao que mencionou, de todo. Até porque essa "ditadura", como lhe chamou, decorre das opções feitas pelos Estados. Referia-me, outrossim, a um regime político de cariz totalitário, mesmo.
Caro Pinho Cardão, tem toda a razão, o desconcerto e total e tudo parece ser determinado pela "defesa do castelo, não o castelo onde se abriga a cidade, mas a torre onde se abrigam os reguladores". Conforme tão bem explica o autor de Linhas de Fractura, semeado o pânico, o ambiente criado propicia que se tomem medidas sem o necessário sentido crítico, e que se cumpram agendas que não teriam forma de passar noutro contexto.
Caro Zuricher, receio que ainda falte algum tempo para chegarmos a esse apuro, por enquanto o ruído ainda é muito grande, basta ver velocidade com que se anunciam coisas, se fazem reuniões, se avança e recua e os novos protagonistas que todos os dias surgem a dar bitaites ao nível europeu.
Caro Bartolomeu, excelente reflexão, a verdade e a razão são o que há de mais volátil, um dia heróis noutro dia carrascos, um dia louva-se o progresso material e o consumo, noutro vitupera-se quem não teve a pridência, dificilima, de resistir às tentações. Houve políticas activas, a nível global, para que chegássemos onde chegámos, agora parece que estão todos de cara no chão,a apanhar as canas e a esconder a mão que as lançou ao ar.
margarida, leia mesmo, que vai gostar e, no caso do deserto dos Tártaros, vale bem a pena começar por ler o livro e depois ver o filme, vai ver que não se arrepende. Ei li o livro há muitos anos e já tinha visto o filme quando, episodicamente, passou por uma das salas mais discretas (e há muito desaparecida) dos nossos cinemas. Mas agora, que reli o livro e voltei a ver o filme, fiquei surpreendida com as novas perspectivas que pude apreciar. quanto a corrigir os erros, tudo leva muito tempo, e é preciso que vamos no caminho certo...
Caros Bartolomeu e Zuricher, em animado e interessante diálogo, um dos riscos desta crise (e de todas as crises graves) é a de aceitarmos dispensar valores de liberdade e democracia que até agora nos pareciam absolutamente certos. Tal como no Deserto dos Tártaros, há certezas que nunca são definitivas e horizontes que escondem muitas ameaças que negligenciamos simplesmente porque já não constam da memória dos vivos, convencemo-nos de que "nunca mais" e sem darmos por isso, vamos criando as condições para que tudo volte a acontecer. Não sei quando será, caro Zuricher, mas sei que há coisas que começam a acontecer no preciso momento em que admitimos que venham a ser uma realidade.
«...sei que há coisas que começam a acontecer no preciso momento em que admitimos que venham a ser uma realidade.»
E não será que admitimos essas coisas, precisamente porque elas já existiram num tempo, do qual não temos capacidade para nos recordar?
Por exemplo; o que leva alguém a perseguir a ideia de criar algo que não existe ainda?
Ou seja; o que me levará a não desistir de inventar uma máquina que nos transporte de um lugar para outro, instantâneamente? Ou, o que me levará a acreditar que conseguirei inventar uma máquina, onde se coloque o doente e ele fique instantâneamente curado, seja qual for a doença de que padeça?
Será que se eu sonho com algo, é porque aquilo com que sonho existe efectivamente em algum lugar, e que a insciência, não limita a descoberta?
Até que ponto o desconhecimento da realidade, poderá atestar a irrealidade?
Provávelmente, aquilo a que chamamos esoterismo, e que foi já o alicerce de sociedades e de religiões secretas, seja o conhecimento ancestral de natureza técnica, adaptável simultâneamente à matéria e ao espírito... talvez, talvez, talvez.
;))
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