A
Assembleia da República aprovou na generalidade, nos finais de novembro do ano
que passou, a proposta de lei que visa substituir a velha e ineficaz Lei dos Solos
(Decreto-lei n.º 794/76, de 5 de novembro) e a Lei de Bases da Política de
Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de agosto). A par
de algumas proposições positivas que por si justificam a alteração do atual
quadro legal, o Governo propôs e a Assembleia da República aceitou quase sem
discussão, uma solução infeliz quanto ao papel da administração central no
planeamento do território. Papel que já hoje é supletivo, mas ainda assim
essencial no quadro do sistema de gestão territorial que conjuga e articula competências
do Estado, das regiões autónomas e dos municípios em razão da natureza dos
interesses públicos a defender e prosseguir.
A
iniciativa que a AR acolheu extingue a figura dos planos especiais de ordenamento do território enquanto instrumentos
de caráter regulamentar, diretamente vinculativos dos particulares. O elevador
da responsabilidade do Estado que em 1999 tinha subido ao patamar certo e que
ao longo de década e meia vinha sendo afinado e aperfeiçoado, vê-se agora
substituído por um modelo em que essa responsabilidade é endossada aos
municípios. Ao Estado passará a caber, somente, a definição de diretrizes que
as autarquias verterão para os seus planos locais, adquirindo aí normatividade.
Abdicar
da força jurídica plena dos planos
especiais é enfraquecer a vertente do sistema de gestão territorial em
vigor que assegura a prevalência do interesse geral sobre os interesses locais.
Passaremos a ter o planeamento do nosso litoral repartido pelos mais de 60
planos diretores municipais, contrariando todos os diagnósticos que consideram
a pulverização de poderes administrativos sobre a costa portuguesa um dos fatores
responsáveis pela fraca resposta dada aos problemas que assolam o litoral
português e as zonas estuarinas. Passaremos a ter as albufeiras, e, logo, a
garantia da qualidade da água para usos primários, entregues ao poder
planificatório dos municípios e à mercê da sua capacidade de transformarem
diretrizes em boas e efetivas normas. O mesmo ocorrerá com a defesa recursos
bióticos e abióticos de interesse primevo, da biodiversidade presente nos
parques e reservas naturais e nas áreas protegidas. É, pois, uma opção que
ignora que estes valores e recursos não conhecem as fronteiras administrativas
dos municípios, nem estas foram traçadas em função daqueles.
A
avaliação das políticas ambientais das últimas décadas demonstra que a demissão
por parte da administração central das responsabilidades de intervenção em
defesa de valores e bens de interesse nacional, longe de contribuir para a coesão
nacional, faz com que se exacerbem os localismos e se gerem desigualdades
gritantes entre os municípios que prosseguem políticas de ocupação racional dos
solos, e outros que optam por as secundarizar (com o paradoxal benefício
financeiro destes últimos). O legislador parece igualmente desconhecer este
dado.
Uma
nota final para assinalar uma falácia. A alteração é feita com o argumento do
reforço do poder local. Mas não é assim. Em primeiro lugar porque sempre que o Estado se exonera de responsabilidades nunca existe
verdadeira descentralização. Descentralização não significa demissão ou desrespeito
pela repartição constitucional de poderes e funções, sendo um movimento que só
deve ocorrer quando se reconheça que o interesse geral é melhor prosseguido noutros
patamares de administração. Depois porque, como os municípios cedo descobrirão,
é mais uma oferenda embrulhada no lustroso e atraente papel da autonomia, mas corresponde,
como outros no passado, a um presente envenenado. O esforço que o novo quadro
vai exigir, em especial aos impreparados pequenos e médios municípios (em cujos
territórios se situa a maior parcela dos valores e recursos a preservar),
jamais encontrará contrapartida no apoio que a administração central estiver
disposta a prestar.
Eis,
pois, uma daquelas opções políticas que à razão tudo deve, com a agravante de
não ser, como outras, neutra nos seus efeitos. Com a sua consumação, todos
ficam a perder.
(*) artigo de opinião publicado na edição do jornal i de 22/01/2014
2 comentários:
Plenissimamente de acordo, caro Ferreira de Almeida. Aliás, o rumo que em Portugal tem sido seguido no sentido de dar poderes de planeamento territorial é profundamente errado e impede a própria existência de coerência e coesão no todo nacional. Os municipios são unidades demasiado pequenas para poderem planear o que quer que seja que tenha a ver com ocupação do território. Mudanças, a haver, deveriam ser precisamente no sentido oposto: tirar-lhes as competências que já têm hoje em dia. Eventualmente podem ficar com os planos de pormenor. Não vem daí mal ao mundo.
Depois, uns anos mais tarde, lamentamos as consequências, critica-se o Governo que estiver na altura, ninguém se lembrará do que esta lei determinou e faz-se uma nova lei. Pelo caminho diz-se que o Estado, entenda-se os técnicos e os serviços, são incompetentes e nunca fazem nada capaz.
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