Dantes, até 1977, havia os filhos de pai ou mãe "incógnito", ficava no registo de nascimento a ilegitimidade, eram filhos nascidos "fora do casamento" numa época em que ter filhos sem o devido registo matrimonial prévio era muito mal visto na sociedade. Nos casos mais comuns, era o pai o "incógnito" ou porque já fosse casado e não quisesse assumir o "mau passo" ou porque não lhe interessava assumir essa responsabilidade. Não era só a criança, a mãe solteira era marginalizada e o fardo social prolongava-se em dramas tantas vezes glosados na literatura e no cinema. Eram crianças que ficavam, por assim dizer, partidas ao meio, na lógica de Salomão, faltava-lhes uma parte, que até podia muito bem cumprir todas as obrigações e devoções a que um pai ou uma mãe estavam obrigados ou dedicados mas não a assumia e a sociedade virava a cara para o lado. Esta ignomínia foi abolida e os registos já não inscrevem "ilegítimo", entretanto a moral e os costumes evoluíram e hoje parece ridículo que houvesse crianças e adultos a sofrer com tal estigma, tal como já poucos se importam que uma criança nasça antes ou depois do casamento, ou mesmo sem casamento nenhum. Como diz a minha mãe, tantos dramas, tantos suicídios ou tantas vidas desfeitas por causa de uma coisa a que hoje ninguém dá valor.
Entretanto também se aceitam práticas médicas de procriação com recurso a doadores, há barrigas de aluguer e há muitas pessoas que optam por ter filhos sozinhas, sem ter que acertar as suas vidas com outra pessoa. E também há pessoas que casam ou vivem com pessoas do mesmo sexo, que têm filhos deles que não têm registado o outro progenitor, ou que já o perderam, e que querem partilhar essa criança, a responsabilidade e a devoção que um filho exige, com a pessoa com quem partiham a vida. Podiam viver assim, sem querer formalizar nada, nem casamento, nem guarda e cuidado dos filhos de um deles, mas é natural que não lhes chegue, que queiram assumir formalmente a parte que se dispõem a cumprir, não aceitam que um fique "incógnito" por preconceito incompreensível ou falsos moralismos que um dia nos pareceriam completamente absurdos.
Além disso, se o padrão que reconhecemos sem dificuldade é o do "benefício" de ter uma pai e uma mãe, assim mesmo, um de cada sexo, há que convir que há milhares de crianças a viver sem um deles, o que é bem pior do que ter duas mães, ou dois pais, que livremente decidem que a criança fica dos dois, para a amarem, protegerem e acompanharem ao longo da vida.
Se dois homens, ou duas mulheres, que vivam juntos ou sejam casados, quiserem assumir o filho de um deles como se fosse seu, através da co-adopção, porquê insistir em deixá-lo "incógnito"?
5 comentários:
A adopção plena corresponde a um vínculo definitivo entre um adulto e uma criança, ou entre dois adultos e uma criança.
O casamento é um vínculo cada vez menos definitivo entre dois adultos. É um vínculo que pode ser desfeito facilmente por opção de qualquer uma das partes.
Que caracteristica do casamento justifica a figura da co-adopção?
Não tenho rigorosamente nada contra a adopção homoparental, contra o casamento homosexual.
Mas tenho sérias dúvidas que o casamento ou a união de facto sejam condição suficiente para acesso a uma "co-adopção" facilitada, independentemente da homo ou heterosexualidade do casal.
Muito bem!
Mas para esta clarividência foi preciso percoorrer um longo caminho com custos sociais e humanos enormes que a sua mãe aborda muito bem:
"(...) Como diz a minha mãe, tantos dramas, tantos suicídios ou tantas vidas desfeitas por causa de uma coisa a que hoje ninguém dá valor. (...)"
Muito bem.
E conheço carradas de "filhos de pai incógnito" que têm um pai e uma mãe...
Caro Nuno Cruces, a explicação resulta de uma estratégia política dos promotores da proposta de lei, como explicam na exposição de motivos, é que a dificuldade previsível em fazer aprovar a lei da adopção levou a este passo menos ambicioso mas que resolve situações concretas de crianças que já vivem com esses casais, sendo filos de um deles e que beneficiariam já desta possibilidade legal.
Sim, caro jotac, é muito difícil, e às vezes ainda bem, mudar convenções, mentalidades e preconceitos, muitas vezes decorrentes ou confundidos com valores que devem preservar-se, nunca é uma evolução fácil e não é isenta de riscos, mas sem isso de facto não se progride. Neste caso, no entanto, nem consigo perceber onde está a dificuldade.
Suzana
É o superior interesse das crianças que está em causa.
Estamos a falar de direitos fundamentais que deveriam ser protegidos. O que no passado era criticável e estigmatizante hoje é aceite sem qualquer problema. Porque estamos a fazer o mesmo que no passado? Quantos anos ou décadas terão que passar?
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