Fui almoçar à "caverna". Chamo-lhe "caverna" não no sentido pejorativo mas como sinónimo de um lugar onde posso desfrutar velhos tempos em que o homem se comportava com regras próprias, primitivas, mas nem por isso menos ricas em termos de experiências e vivências. Uma "caverna" perdida no interior onde ao domingo se cruzam personalidades retiradas de tempos que já lá vão, alguns dos quais tive ainda oportunidade de conviver. Uma viagem no tempo próximo e também no tempo remoto. Ouço conversas, analiso comportamentos, desfruto de momentos e tipos de linguagem que me inspiram e até ajudam a simplificar a existência. As conversas eram poucas, e ainda bem, porque assim conseguia apanhá-las. Deixei que se arrastassem em temas diversos os quais não me estavam a seduzir, até que no televisor, hora do telejornal, o jornalista começou a dar ênfase ao resultado de futebol da Académica com o Porto, com a vitória inesperada do primeiro clube, coisa que não acontecia há mais de quarenta anos. Como se tratava de futebol, e ainda por cima de uma derrota do Futebol Clube do Porto, teve direito a notícia e a uma reportagem com entrevistas a alguns simpatizantes que consideraram uma vergonha a derrota do seu clube, para não falar dos desacatos dos que não sabem perder, umas bestas, que tanto dão vivas como são capazes de vociferar e desejar a "morte" da equipa. Um dos companheiros da "caverna", que não sabia do resultado, comentou para um vizinho: - O Porto perdeu? É uma vergonha. Resposta imediata: - Vergonha? Vergonha é roubar e ser apanhado! Fiquei com aquela no ouvido e não pude deixar de rir. Com que então "vergonha é roubar e ser apanhado". Agora começo a compreender a falta de vergonha que anda por aí, às tantas é devida ao facto dos ladrões do país não serem apanhados! O meu comentário não impediu que continuasse a ouvir a conversa, até que um deles olhou para a cântara e diz: - Oh diabo! Está vazia. - Está? Então tome lá a minha que eu já acabei de comer. - Obrigado. Recebe a cântara que ainda tinha algum vinho e começou a fazer a higiene oral, bochechando os dentes com um valente copázio. O Ah! de satisfação alastrou-se pelo antro. A conversa continuou com diálogos em que alternativamente o burro falava para o tamanco. Entretanto, o bronco, cujas costas esbarravam contra as minhas, baixou a cabeça para a mesa e atacou a travessa. - A senhora chama-lhe a atenção para o prato que tinha ao lado. - Leve o prato, sempre é menos um que tem de lavar, eu como da travessa. A voz grossa, alimentada pelo vinho que ia emborcando em enormes copos de cerveja, cheios de um qualquer carrascão, denotava uma grosseria típica daquelas bandas. Deve ter vindo das serranias em redor. Presumo que é a segunda ou terceira vez que o vejo. A mulher, ainda mais calada, deve divertir-se com a sua diabetes ao mamar taças avantajadas de arroz-doce. A dona da casa de pasto já lhe chamou a atenção para esse perigo na sequência de uma conversa tida anteriormente. Qual quê, diz ela, já que tem de morrer, ao menos que morra com doces. Ouço a conversa nas minhas costas e comento baixinho: - Pois, morrer morre, mas uma coisa ela não sabe, a morte dela não vai ser doce, nem pêra doce. Esta gente não tem vergonha. - Vergonha? Então não acabaste de ouvir que "vergonha é roubar e ser apanhado"! Ah, pois é, tens razão, já me esquecia que estamos num país de desenvergonhados.
Frase do dia: "vergonha é roubar e ser apanhado".
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