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sábado, 30 de março de 2013

O meu "Cristo" e a Páscoa...


Na véspera do Natal de há três anos escrevi um pequeno texto sobre o meu "Cristo". Na altura, ao escrever, pensei que a melhor época para o publicar seria a Páscoa e não o Natal. A expectativa de me cair nas mãos levou-me a isso. No entanto, as histórias que vivi em seu redor dizem respeito a este período. Hoje, véspera de Páscoa, fui relê-lo. Gosto de o ler. É a segunda vez que o publico, a primeira foi na véspera do seu nascimento e a segunda na véspera do seu segundo "nascimento". Como não tenho mais nada para oferecer aqui o deixo com votos de uma Boa Páscoa. O meu "Cristo" encerra em si emoções, vivências e recordações únicas sem as quais não seria o que sou hoje. Uma confissão que me sabe bem...


"Ainda hoje recordo com nostalgia os momentos das férias, que aspirava ansiosamente, não para descansar, porque energia era coisa que não faltava na altura, mas para desfrutar mais à vontade as brincadeiras e as festividades que os embrulhavam. Quantas recordações desses tempos me acariciam o pensamento.
Mas não se pense que não tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se, momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”. Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primeiro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfregavam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito. Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujidade, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma moeda.
No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, rodeado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta a avisar a chegada, corríamos todos para a sala. Entrava o puto a ribombar o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais. Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o envelope e enfiar mais um copo a tantos outros, ao ponto de não dizer coisa com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá, blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfado e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Páscoa seguinte.
A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei, mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças prontas a serem vividas.
Está mais escuro, sujo, até mais magro e um pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios, meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não ficaram por contar..."

6 comentários:

Bartolomeu disse...

Ao texto que publicou numa quarta-feira do mês de Dezembro, véspera do Natal de 2010, coloquei um comentário fazendo referência à forma sempre Humana, como o Sr. Professor vê o mundo e a forma excelente como no-lo transmite, escrevendo. Aludi também naquele comentário a uma opinião do escritor José Saramago.
Hoje, ao relê-lo nesta publicação, percebo que nos quis dizer mais em 2010, que aquilo que entendi.
Quis dizer-nos sobretudo, que só em duas alturas específicas do ano, recordamos e homenageamos um homem que morreu crucificado para que a Humanidade compreendesse o sentido da Humildade e o que essa virtude acrescenta ao da Fraternidade e da Igualdade.
Estava certíssimo o seu coração de criança. Apesar de pequeno, os seus olhos viram mais que os dos grandes. O verdadeiro Rei, achava-se no centro da mesa e representava-se numa peça de marfim, igual ao de Caravagio, mais humilde talvez, mas mais irmanado.
Espero, caro Amigo, que esse Cristo que nos iguala, permita que todos os anos, durante muitos ainda, republique o "seu Cristo", pelo Natal, assinalando o seu nascimento e pela Páscoa, assinalando o seu renascimento. E que todos nós possamos lê-lo e comenta-lo, encontrando nele, de cada vez que o fizermos, um novo sentido para a vida.
Obrigado!

Massano Cardoso disse...

Um abraço, Bartolomeu. Os seus comentários, além de refrescar a alma, são uma deliciosa fonte de inspiração. Um abraço amigo e um bom domingo de Páscoa...

Pinho Cardão disse...

Ora aí está um texto dos que merecem ser sempre repetidos, pelo sentimento que expressa, pela beleza da escrita, pelas memórias que aviva. Abraço, caro Professor!

Anónimo disse...

Subscrevo o comentário de Pinho Cardão, acrescentando que é sempre um enorme prazer a leitura dos textos que o Prof. Massano aqui nos traz.

Suzana Toscano disse...


Também me soube muito bem ler, como sempre acontece com os seus textos e memórias que aqui nos traz. Uma Páscoa muito Feliz!

Catarina disse...

Vou repetir-me...
Gosto muito de ler os seus textos, caro Prof. e este não foi exceção.
Abraço