Hoje, em Lisboa, no decurso de um delicioso almoço com uns amigos, recebo um telefonema. Um amigo do coração, e da razão, telefona-me a pedir autorização para publicar um texto meu, "Duas rosas". Não me lembrava do texto, mas disse logo que sim. Apreciei o gesto. Tudo o que escrevo é para ser lido. Cheguei a casa e fui ver o que é que tinha escrito. Foi no ano passado. Lembro-me do Félix, entretanto falecido na sequência de um acidente, uma queda. Lembro-me dele neste serão solitário. Confesso, sinto saudades dele. Um almoço, um telefonema, um texto e uma lembrança. Em suma, a vida é feita de pequenas associações. O que é que eu posso fazer? Reproduzir o texto, partilhá-lo e beber uma bebida à sua memória. É isso. Vou beber à sua memória.
À memória do Félix.
"Duas Rosas Vermelhas"...
Acabei, ao fim de algum tempo, por saber que teve um passado fermentado pela luxúria, recheado pela aventura e afogado no álcool. Acabou tudo, os primeiros pelo efeito do tempo e o último por vontade própria. Depois começou a perder peso de uma forma assustadora, muitos quilos, tantos, que o homem, já de si perturbado, não sei se pela vivência ou devido à sua estrutura, ficou ainda muito pior. E eu comecei a ficar igualmente. Pus-me a vasculhar pelos meandros do seu corpo para saber onde estaria o gato, mas, por mais voltas que desse, não encontrava nada. Pus a hipótese de que a falta das calorias do tinto seria o responsável, aliada a qualquer perturbação de cariz metabólico não detetável ou a alguma depressão mascarada. Como continuava a emagrecer, joguei, em doses baixas, com o efeito secundário de um medicamento, e, para minha satisfação, deixou de perder peso, começando, lentamente, a engordar. Semana após semana era evidente a alegria do senhor. Eu é que comecei a ficar novamente inquieto porque os quilos começavam a ser demasiado visíveis, insuflando-o em todas as latitudes. Paralelamente a uma boa disposição, também crescente, comecei a conhecer um pouco do seu passado. E que passado! Sempre que tentava abordar alguma das suas aventuras, um sorriso estafado, a lembrar o gato Félix, iluminava-lhe o rosto de uma forma encantadora. Já reparei que aquela forma de rir é muito comum nalgumas pessoas, capaz de seduzir outras, de saias, para ser mais preciso.
Posteriormente fez-se acompanhar da mulher, também doente, para que a consultasse. Faladora nata, ia debitando os seus males, ao mesmo tempo que se "queixava" da vida que o marido lhe dava. E ele sempre calado com o tal sorriso a querer alargar-se nas costas da mulher, quando esta dava a entender algumas das suas marotices. Nesses momentos olhava-o, mas sem grandes sinais de incómodo, parecia que já se tinha habituado. Inicialmente não aprofundei em demasia o assunto, mas sempre ia dando alguma corda para outros momentos, ao mesmo tempo que ganhava a confiança da senhora para que pudesse cumprir a terapêutica e alguns conselhos indispensáveis ao seu bem-estar e saúde.
Com o tempo, quem começou a contar as aventuras do carteiro foi a mulher. Primeiro em França, onde espanholas, francesas, nicaraguanas, e sei lá que mais outras nacionalidades, foram alvo de venturas e algumas desventuras. "Mas o pior não foi em França, senhor doutor". Ai não! Não, foi aqui perto, quando começou a exercer as atividades de carteiro. Não foi tanto assim, dizia o marido, mas era visível que estava comprometido, o sorriso atraiçoava-o. E a mulher contava histórias, uma após outra, enquanto o carteiro, agora reformado, ouvi-a com nítida sensação de regozijo, mas sempre mudo. Então o carteiro entregava cartas e mais alguma coisa, disse-lhe. Pois, o carteiro toca sempre duas vezes, ripostou, embora ficasse com a nítida sensação de que nunca tinha lido a obra de Neruda, cantava-a de ouvido. Mas o senhor não tocava só duas vezes, chegava a tocar cinco ou mais. O sorriso floria-lhe com uma satisfação dos diabos.
Então, ele tem-se portado bem, tem andado satisfeito, perguntei à mulher. Sim, anda pois, passa o dia sem fazer nada, não me aborrece, estou tão admirada que nem quero acreditar, senhor doutor. É verdade! Sabe o que me aconteceu? Não, diga. Não é que ao fim de 43 anos de casada o meu marido ofereceu-me duas rosas vermelhas no dia dos namorados? Olhe que nunca me deu nada em toda a minha vida, isto é, exceto as minhas duas filhas, mas rosas senhor doutor, nem rosas nem nada! Olhei para o gabiru, sentado tranquilamente à minha frente, e o tal sorriso, safado, sedutor, iluminou-se como nunca. E ela, muito orgulhosa e feliz, a que não era alheio a compensação do seu estado clínico e, também, do seu marido, irradiava uma felicidade tão sentida que me tocou. Ambos estão bem, de corpo e sobretudo de alma...
1 comentário:
Pois, tratar do corpo e do espírito é de médico e de feiticeiro :) À saúde de todos!
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