O encanto da História, e sua enigmática lição, consistem no facto de, de era em era, nada mudar e, contudo, tudo ser completamente diferente.
Aldous Huxley
Aldous Huxley
Corria o ano de 1975, com o Processo Revolucionário em pleno Curso. O principal accionista da empresa fugira para o Brasil, os trabalhadores das fábricas e da sede tinham declarado a auto gestão enquanto se aguardava a decisão da nacionalização. O engenheiro era o único membro da administração que se mantinha em funções, a pedido do Governo, porque não havia mais ninguém capaz de assegurar o mínimo funcionamento da empresa e a passagem de testemunho aos que viriam assumir a direcção, nomeados pelo novo dono, o Estado.
O engenheiro tinha entrado para a empresa muito novo. Estudara com uma bolsa e fora o melhor aluno do seu curso, por isso mesmo conseguira emprego na fábrica, um começo da carreira que havia de ser a sua vida inteira, subindo na hierarquia das responsabilidades sem outro apoio que não o do trabalho árduo e escrupuloso e da aceitação dos postos por esse país fora, até poder finalmente assentar arraiais em Lisboa, já os filhos mais velhos estavam a terminar o liceu.
Orgulhava-se muito da sua afirmação profissional e do modo como tinha conseguido, à custa do seu trabalho, deixar para trás a infância pobre, as intermináveis horas de estudo à luz do candeeiro de petróleo que ainda guardava em cima da cómoda do quarto, como símbolo do que tivera que vencer. Orgulhava-se também de ter sempre procurado ajudar os operários, lutar pelos seus direitos quando os sentia justos, quantos aborrecimentos isso lhe tinha causado, dizia mais tarde, com um riso amargo, chegara a ter fama de comunista nos finais dos anos 50, quando tinha a direcção de uma fábrica numa zona crítica do país, e chegou a temer pelo seu emprego quando um dia a PIDE lhe invadiu o escritório para lhe fazer perguntas sobre um contestatário.
Quando, em princípios dos anos 70, o patrão decidiu escolher um administrador de entre os directores da casa, escolheu-a a ele, e ninguém se surpreendeu com isso, eram consensuais o seu prestígio e a sua dedicação à empresa. Ele sentiu um orgulho imenso nessa recompensa de uma vida e passou a chegar a casa ainda mais tarde, ainda mais cansado, redobrando o escrúpulo que sempre pusera no seu desempenho.
Naquele dia de 1975 ia a entrar na sede da empresa para subir ao andar da administração. Atravessou sem problemas o magote de gente que desde a madrugada se aglomerava com bandeiras no passeio em frente à porta, gritando os slogans da época, muitos conheciam-no e todos sabiam também que, sem ele assinar os papéis, não receberiam os ordenados desse mês.
Mas, quando passou pelo porteiro, que há anos ocupava aquela secretária, o homem não lhe dirigiu os bons dias, antes lhe lançou um olhar de ódio e desatou a gritar:_ Eu queria era vê-lo aqui no meu lugar, a ganhar esta miséria, e eu no seu lugar, a ganhar um dinheirão! Isso sim, é que eu queria ver, eu ficava com o seu cheque e você com o meu, para ver como é!
O engenheiro parou, sentindo a agitação crescer na rua com os aplausos entre os manifestantes. Voltou-se para o porteiro e disse:
_ A diferença não é só nos cheques, a diferença é que eu podia sentar-me aí na sua cadeira e fazer o seu trabalho, enquanto o senhor não seria capaz de fazer o meu. E agora, se me dá licença, vou tratar do pagamento dos ordenados a todos os que trabalham na empresa.
Enquanto a porta do elevador se fechava ainda ouviu o porteiro gritar, enfurecido:
- Fascista!
O engenheiro atravessou o corredor, passando pelos gabinetes vazios dos outros administradores, sentou-se à secretária e trabalhou até tarde, para que os pagamentos pudessem ser feitos a tempo e a horas. Quando saíu, há muito que o porteiro tinha arrumado a cadeira e terminado o seu turno.
O engenheiro tinha entrado para a empresa muito novo. Estudara com uma bolsa e fora o melhor aluno do seu curso, por isso mesmo conseguira emprego na fábrica, um começo da carreira que havia de ser a sua vida inteira, subindo na hierarquia das responsabilidades sem outro apoio que não o do trabalho árduo e escrupuloso e da aceitação dos postos por esse país fora, até poder finalmente assentar arraiais em Lisboa, já os filhos mais velhos estavam a terminar o liceu.
Orgulhava-se muito da sua afirmação profissional e do modo como tinha conseguido, à custa do seu trabalho, deixar para trás a infância pobre, as intermináveis horas de estudo à luz do candeeiro de petróleo que ainda guardava em cima da cómoda do quarto, como símbolo do que tivera que vencer. Orgulhava-se também de ter sempre procurado ajudar os operários, lutar pelos seus direitos quando os sentia justos, quantos aborrecimentos isso lhe tinha causado, dizia mais tarde, com um riso amargo, chegara a ter fama de comunista nos finais dos anos 50, quando tinha a direcção de uma fábrica numa zona crítica do país, e chegou a temer pelo seu emprego quando um dia a PIDE lhe invadiu o escritório para lhe fazer perguntas sobre um contestatário.
Quando, em princípios dos anos 70, o patrão decidiu escolher um administrador de entre os directores da casa, escolheu-a a ele, e ninguém se surpreendeu com isso, eram consensuais o seu prestígio e a sua dedicação à empresa. Ele sentiu um orgulho imenso nessa recompensa de uma vida e passou a chegar a casa ainda mais tarde, ainda mais cansado, redobrando o escrúpulo que sempre pusera no seu desempenho.
Naquele dia de 1975 ia a entrar na sede da empresa para subir ao andar da administração. Atravessou sem problemas o magote de gente que desde a madrugada se aglomerava com bandeiras no passeio em frente à porta, gritando os slogans da época, muitos conheciam-no e todos sabiam também que, sem ele assinar os papéis, não receberiam os ordenados desse mês.
Mas, quando passou pelo porteiro, que há anos ocupava aquela secretária, o homem não lhe dirigiu os bons dias, antes lhe lançou um olhar de ódio e desatou a gritar:_ Eu queria era vê-lo aqui no meu lugar, a ganhar esta miséria, e eu no seu lugar, a ganhar um dinheirão! Isso sim, é que eu queria ver, eu ficava com o seu cheque e você com o meu, para ver como é!
O engenheiro parou, sentindo a agitação crescer na rua com os aplausos entre os manifestantes. Voltou-se para o porteiro e disse:
_ A diferença não é só nos cheques, a diferença é que eu podia sentar-me aí na sua cadeira e fazer o seu trabalho, enquanto o senhor não seria capaz de fazer o meu. E agora, se me dá licença, vou tratar do pagamento dos ordenados a todos os que trabalham na empresa.
Enquanto a porta do elevador se fechava ainda ouviu o porteiro gritar, enfurecido:
- Fascista!
O engenheiro atravessou o corredor, passando pelos gabinetes vazios dos outros administradores, sentou-se à secretária e trabalhou até tarde, para que os pagamentos pudessem ser feitos a tempo e a horas. Quando saíu, há muito que o porteiro tinha arrumado a cadeira e terminado o seu turno.
8 comentários:
Gostei do post e da sua oportunidade. Há muitos jovens, com menos de 35 anos, que não conhecem factos destes, ou similares, que caracterizaram o PREC.
Desconhecem porque tem havido uma "dinâmica" para esconder parte da história contemporânea.
Por outro lado, há pessoas (politicos) que, para ficarem na história, escrevem as "suas aventuras" e não deixam a história para que os historiadores, daqui a 30, 50 ou mais anos, com o necessário e respectivo distanciamento escrevam a história.
... e todos nós conhecemos um "engenheiro", como todos nós sabemos quem foi o "porteiro"...
Sabe, cara Suzana, muitas vezes tenho pena de que as pessoas não possam experienciar o resultado do que preconizam e desejam. No Portugal de hoje em dia em particular lamento-o de forma muito veemente. Mas enfim, ainda não foi inventada a máquina da realidade paralela portanto tenho que ficar-me apenas pelo desejo.
Da mesma forma que esse porteiro merecia ter colhido os frutos do seu ódio, ou seja, ter ficado sem o seu ordenado, também aqueles que em Portugal advogam soluções idiotas (default puro e simples, por exemplo) mereciam experienciar os resultados disso durante algum tempo em todo o seu esplendor durante, digamos, 12 meses. Ou, enfim, há alguns tão recalcitrantes que podiam purgar o dislate até ao fim dos seus dias que não se perderia nada.
Cara Suzana:
Creio que talvez só em alguns momentos do PREC se antagonizou e diabolizou tanto como hoje todos os que vão acima da média. A diferença está proibida, a inteligência e vontade não contam, o esforço e distinção individual é coisa reprovável.
Estamos num país de pequenos e médios. E quando os médios desaparecerem, ficaremos enfim um país de pequenos.
Algum "encanto (amargo) da História".
Passarmos do PREC (revolucionário) aos PEC (empobrecimento em curso), ao PREC do momento: Processo de reconstrução em curso).
De um jornalista francês que por aqui andou em 74/75:
“O quinto império”
As revoluções, quem quer que sejam os seus autores, não mudaram nada. Conduzem aos mesmos abismos. A dificuldade é mudar o homem (192)
Dominique de Roux (1977, Paris)
Suzana
Um episódio que nos mostra como o comportamento colectivo alimentado pela cegueira da inveja e da vingança e por promessas de circunstância é capaz de transfigurar comportamentos individuais normais.
Caro Eduardo Silva, é verdade!, aliás lembrei-me deste episódio porque um amigo meu, que tem menos de 40 anos, falava, a propósito dos "milionários" que se tornaram no inimigo público,de um modo que me lembrou o PREC e quando lho fiz notar respondeu-me que não sabia de que é que eu estava a falar!
Caro Tonibler, acho que este fenómeno de avaliar pelo cheque nunca deixou de existir mas ao menos esteve fora de moda durante umas décadas... enquanto durou a prosperidade, ilusória ou não.
Caro Zuricher, de certa forma as pessoas experimentam os resultados, ou o país não estaria como está. O problema é que raramente se reconhece quais foram e a respectiva gravidade deste tipo de erros, por isso se volta sempre ao mesmo, é fácil, dá votos e depois reclama-se uma mudança de mentalidades.
É isso, caro Pinho Cardão,um país de pequenos mas que quer os médios e os grandes, uma contradição que torna difícieis as decisões.
Caro Bmonteiro, sobretudo quando não se quer realmente mudar.
Margarida, lembra bem, o colectivo pode tornar-se oposto ao que cada indivíduo considera sensato e defensável, é um fenómeno que já verificámos várias vezes.
Cara Suzana Toscano,
Permita-me apresentar uma sequela para a sua estória da nossa história. Baseio-me em vários acontecimentos e estórias desde essa época que só agora começa a ser dissecada pelas gerações posteriores. O meu avô dizia que os jovens procuram sempre o(s) culpado(s) da suas dificuldades em vez as resolver e ultrapassar. E na procura de feitos e erros dos antepassados lembram e relembram a sua história. Também respondo ao comentador Zuricher que as nossas acções, cedo ou tarde, têm SEMPRE consequências correspondentes.
O engenheiro, depois do sucedido naquele dia na fábrica, começou a notar que os funcionários, apesar de receberem os salários todos os meses a tempo e horas, produziam cada vez menos. Passavam grande parte das horas de serviço em reuniões e confraternizações políticas, chegavam tarde frequentemente, exigiam aumentos de salário e turnos de trabalho cada vez mais curtos. Exigiam sempre os direitos dos trabalhadores e contestavam os deveres de trabalho. Na empresa a produção parou e cada dia era mais difícil comprar as matérias primas, e fazer os pagamentos de salários e impostos. Um dos clientes dessa empresa, conhecedor das capacidades do engenheiro, soube da situação em que a empresa estava e sem demora propôs-lhe um contrato de trabalho. Teria mudar-se para outro continente, outra língua e cultura, e o contrato para além de um melhor salário incluía o financiamento da educação dos filhos. Depois de falar com a família decidiu aceitar a proposta e emigraram.
Foi substituído na fábrica pelo filho do porteiro. Um jovem advogado, licenciado administrativamente, nomeado para o cargo devido às suas reconhecidas actividades revolucionárias de ocupação de propriedade alheia por meio de arma sem munição. E como seria de esperar aplicou-se no cargo. Uns anos depois quando a fábrica fechou foi nomeado para um cargo político numa autarquia onde fez parte da sua carreira e da sua fortuna. Muitos funcionários da fábrica falida seguiram o exemplo do engenheiro emigrando, outros foram contratados pela autarquia e por outras pequenas empresas que escaparam à ânsia nacional, mas com salários mais baixos.
Presentemente, o engenheiro, apesar de se ter reformado continua a trabalhar por conta própria para a empresa que o considera imprescindível. Os filhos frequentaram boas universidades e seguindo o exemplo do pai tornaram-se bons profissionais. Trabalham em continentes diferentes e visitam os pais em Portugal todos os anos. Transmitem aos seus filhos os mesmos valores que receberam dos pais. O casal voltou para Portugal porque o clima é mais ameno. No entanto, para assistência médica retornam ao país que os acolheu e respeitou durante 30 anos. O engenheiro não enriqueceu mas para o cenário social português é considerado rico.
O engenheiro encontra, de vez em quando, o porteiro da antiga empresa sentado perto do mercado municipal. Este queixa-se sempre da reforma miserável, do facto de receber só parte da reforma a que teria direito se o seu filho, enquanto administrador, tivesse feito os pagamentos dos impostos. A sua reforma não chega para as despesas de saúde nem tampouco para se alimentar bem, e por isso anda sempre doente. Fala frequentemente da grande desilusão da sua vida, o seu filho, e diz que não o vê há anos. É empresário 'bem sucedido', com uma carreira de apropriação com vários registos judiciais que ocuparão muitas horas a um futuro doutorando investigador sócio-político. Vive na capital e faz questão de repetir, a quem o quiser ouvir, que subiu na vida a pulso, um verdadeiro 'self-made man'. Apesar do aparente sucesso empresarial do pai, o neto do porteiro abandonou recentemente a universidade porque não tem meios para sobreviver. Considera aceitar um trabalho nos países baixos como desossador de galináceos que lhe propuseram no centro de emprego.
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