Findava o ano de 1937 quando foi promulgado o decreto para valer como lei que recebeu o nº 28219. Estabelecia uma licença anual obrigatória, pesadamente paga pelos cidadãos que pretendessem deter "isqueiro" ou outros "acendedores". O Estado mostrava-se implacável com quem pretendia aproveitar-se dos avanços da tecnologia, e fazia pagar por essa liberdade quem se propunha empobrecer a protegida indústria do fósforo. Lembro-me da preocupação de meu avô, fumador compulsivo, em andar permanentemente acompanhado da licença do isqueiro, tão apertado era o controlo dos "fiscais das finanças" e da polícia mesmo a quem não o exbindo, era suspeito de possuir um desses objetos.
Aos olhos de hoje esta agressão fiscal - que durou até, salvo erro, 1970 -, pode parecer ridícula, própria de um País redutor da mais inocente das liberdades, que agigantava o Estado para menorizar o cidadão, um Estado pacóvio mais pacóvio do que os seus pouco instruídos subditos.
Mas eis que nesse mesmo País, em pleno século XXI e num tempo em que no discurso político se enaltece a capacidade de aproveitarmos novas tecnologias para o progresso que outros há muito alcançaram, o parlamento se lembra de fazer uma lei destinada a taxar a memória. Não a memória dos tempos em que o legislador reprimia quem possuia "isqueiros" e outros "acendedores". Mas as memórias que hoje permitem registar e guardar essas outras memórias. A memória dos computadores, os discos rígídos, os discos mltimédia, os "discos" SSD, os vulgares leitores MP3/4, os telemóveis com capacidade de armazenamento.
Por iniciativa do PS, que pelos vistos os outros partidos acompanham, está em discussão uma lei que, se aprovada, implicará o agravamento de mais de 20 € do preço do disco de 1TB onde pretendo guardar as fotos de família. Ou de mais de 50 € na aquisição de um disco multimédia onde pretendo armazenar os filmes que fiz ao longo da vida, ou outros que comprei.
Dizem que é para proteger os autores e os seus direitos e não para gerar uma receita mais para o Estado. Mas quais autores e que direitos? Os autores que, por via das novas tecnologias, viram multiplicado por mil o poder de difusão das suas obras? Aqueles que se tornam conhecidos em dias quando no tempo do vinil demoravam anos a mostrar o seu talento? Que direitos de autor (e de que concreto autor) violo eu quando adquiro uma PEN para guardar os meus documentos, as minhas fotos, as minhas crónicas para a rádio?
Está visto, continuamos no mesmo País bacoco e pacóvio onde a capacidade das máquinas não se sobrepõe nem se substitui à falta de inteligência de quem nos dirige. Este legislador, em pleno século XXI, nem percebe que de qualquer parte do mundo se encomendam hoje esses dispositivos, transportados num vulgar envelope postal. Ou será que, para além do absurdo de taxar a aquisição de novas tecnologias, pensa o parlamento determinar com força de lei que os inspetores do fisco ou os polícias voltem a abordar quem suspeitem ter cometido o crime de não pagar tributo pela memória?
9 comentários:
Isto faz-me lembrar a lei das palas nos veículos automóveis. Como se recordarão, pouco tempo depois verificou-se que afinal aquilo não servia para nada (senão para encher os bolsos de alguém que por acaso tinha aberto umas fábricas).
O meu avô falava-me dessa lei, dos isqueiros. Dizia a lei (segundo o meu avõ) que dizia que, isqueiros, só debaixo de telha e que alguns atrevidos da época, transportariam uma telha na cabeça, para afrontar as autoridades (indignados com tal lei).
Será que também neste caso, vamos ter de encontrar telhas e andar com elas na cabeça?
Não sei, caro Jonas. Mas há cabeças que mereciam algumas telhas...
Anda tudo a ver mal a questão e a nove proposta de lei.
Então é assim, paga-se a taxa para armazenar, por causa dos autores.
Portanto, como vamos armazenar fotografias pessoais ou filmes das ferias, no caso os autores seremos nós, certo ?
Então vai daí, só falta saber qual é o impresso que se preencher, para irmos receber a nossa cota de Autor!
Ou não é a suposta taxa para dar aos Autores ???
Às tantas, caro Pedro, era essa telha que a Dra Canavilhas tinha na cabeça...
Ao ler este excelente post reavivaram-se-me as palavras que momentos antes ouvi a um cidadão proferir numa caixa multibanco, enquanto analisava o recibo alheado dos que atrás esperavam pacientemente a sua vez: "estes são piores que os facistas, roubam-nos sem dar cavaco". Era um cidadão do povo, talvez do Bairro da Ajuda, a falar.
Confesso que fiquei incomodado com a comparação, embore julgue compreeder os motivos de tanta ira, afinal de contas hoje é dia 18, faltam 12 dias para o fim do mês e o saldo já aparece no vermelho...
Mas, em todo o caso, comparar a governação atual com a do Estado Novo, ou reeditar leis do mesmo pendor castrante, é viver num permanente anacronismo...
Apenas "meto o bedelho", dado que fui tida por especialista em Direitos de Auor, por Ilustre Catedrático de Direito, infelizmente já desaparecido.
Assim, o que está a fazer-se é a meu ver, errado, mas por outros motivos; de facto, as obras caem no domínio publico apenas 50 anos depois de serem materializadas, ou seja, expressas. Nos anos 80 e 90 assistiamos a gravações piratas e a uma tremenda incompetencia das Sociedades que em representação dos Autores, os deveriam proteger contra esses "abusos", dado que vigora o sistema de royalties.
Obviamente, que a solução passa por edições em obras de encomeda. Obviamente que as editoras não querem pagar os preços substancialmente mais altos que os Autores terão que pedir, já que largam mão da gestão patrimonial do seu Direito; e tudo fica na mesma...
Cara comentadora Carla,
As gravações "pirata" de que fala, dos idos 80 e 90, resultaram em primeira mão de avanços tecnológicos que permitiram tornar terrivelmente mais barata e acessível a cópia. As sociedades (e o código) protegem basicamente a cópia, e assentam em pressupostos terrivelmente ultrapassados. No entanto, e usando o exemplo das cassettes "pirata" video e audio, pode-se agora dizer que, longe de prejudicarem os autores e as ditas sociedades, foram isso sim uma nova fonte de rendimento e expansão para a indústria criativa. Um dos representantes "máximos" dessas sociedades, na altura, comparava o advento das cassettes VHS ao estrangulador de Boston.
Fazendo fast-forward para o presente, desta vez o monstro é a Internet e restantes tecnologias digitais. Estas tornam a cópia ainda mais rápida, acessível a todos, e a preços próximos de zero.
Conclusão: todas estas leis e batalhas de "copyright" nascem de tentativas da indústria de distribuição (que costuma vestir a pele de "representação dos autores") de, prejudicando toda a restante sociedade, manter o domínio dos canais de distribuição, mantendo preços artificialmente altos, barrando qualquer forma de concorrência que lhes possa afetar os modelos de negócio ultrapassados no tempo.
Num mundo onde a cópia custa virtualmente ZERO, como justificar a imposição de preços muito mais altos? Através de leis desajustadas, injustas e que beneficiam muito poucos em detrimento de todos os outros, eis como.
(Curiosamente, ia linkar uma página da Wikipedia, sobre Jack Vallenti e o estrangulador de Boston, mas a Wikipedia está em blackout, exactamente devido à luta contra a tentativa de criar monstruosidades de leis neste âmbito, neste caso, SOPA/PIPA nos Estados Unidos).
Melhores cumprimentos.
Sol na eira e chuva no nabal, é o que é, usam as tecnologias todas para a rápida divulgação, para criar mercado á borla, para se tornarem conhecidos, mas depois aqui d'el rei que afinal não se pagam os direitos de autor por papel impresso e vendido nas livrarias. Excelente post, Zé Mário, na verdade a mentalidade não mudou nada, o proteccionismo dos fósforos ainda mantém todo o esplendor da sua chama.
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