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terça-feira, 2 de maio de 2006

Uma curta reflexão…


Certos acontecimentos, quando ocorrem connosco, ou com amigos, despertam-nos para o recolhimento.
Não sei se é bom-tom ou adequado falar da morte num blog. Não é um tema fácil e desmotiva a maioria das pessoas que preferem abordar assuntos agradáveis ou polémicos. De qualquer modo, sendo a única certeza comum aos seres vivos, sentimos a necessidade de, tempos a tempos, fazer uma reflexão.
Hoje em dia, morre-se de uma forma isolada, “asséptica”, como se houvesse um sentido de vergonha ou mesmo de fuga. A maioria morre num quarto ou enfermaria de um hospital só ou acompanhado dos técnicos de saúde. A mim horroriza-me que alguém morra nestas circunstâncias sem a companhia de um ente querido. Talvez porque tenha tido uma educação em que a morte tinha um outro sentido, não sei! Lembro-me das primeiras vezes em que fui confrontado com esta situação.
A primeira constitui uma das lembranças mais antigas e mais fortes. Tinha cinco anos e a minha amiga de brincadeira morreu de garrotilho. Primeiro fui eu a sofrer e passados alguns dias a minha companheira adoeceu acabando por morrer. Não me esconderam a situação. Fui vê-la e estive a seu lado. A imagem ainda perdura na minha mente. Uma cor fria que nunca tinha observado em ninguém e um buraco na garganta ainda meio ensanguentado. Claro que perguntei porque é que tinha aquele buraco. Lá me explicaram que era para respirar, mas mesmo assim não conseguiram salvá-la. Não gostei de ver o buraco. Acompanhei-a ao cemitério atrás da velha carreta da misericórdia num dia muito quente. Foi a primeira vez que entrei no cemitério e assisti ao cerimonial. Nunca mais me esqueci, nem mesmo hoje, passados 50 anos, deixo de olhar e passar por aquele lugar, sempre que vou ao local. Recordo-me sempre da menina e das nossas brincadeiras.
Mas a primeira vez que assisti a uma morte tinha seis anos. Não me custou nada. Um velho tio acabou os seus dias no seu quarto acompanhado dos seus familiares.
No último dia, ao fim da manhã, mandaram-me chamar o padre Sobral, mais conhecido pelo padre “Rodelas”, para ministrar a extrema-unção. Lá fui mais o padre e as minhas primas para o quarto. O padre “Rodelas” paramentou-se adequadamente e começou a sua prédica, enquanto eu segurava o balde com o hissope. Lembro-me, como hoje, o momento em que o tio Miguel, ofegante, foi aspergido pela água benta a qual me salpicou os olhos quando estava a olhar para o tecto onde estava pendurada, em cima da cama, a velha bicicleta do meu tio. E, enquanto limpava os olhos, perguntava aos meus botões: - Como é que o tio Miguel conseguiu por a pasteleira lá no tecto? E se ela caísse enquanto dormia? Este tio é mesmo maluco!
Depois do almoço, o tio Miguel adormeceu para sempre e nunca mais o veria a fazer os seus cigarros de barba de milho enquanto contava as suas aventuras da Grande Guerra. Morrer assim é outra coisa, sem sombra de dúvida. Depois, ao longo dos anos, os familiares foram desaparecendo e eu acabava por estar presente nas cerimónias com a maior naturalidade. Claro que tenho saudades daquelas pessoas das quais guardo fios e fios de afectos e histórias mirabolantes que a foice da morte nunca conseguiu cortar nem consegue, a não ser quando Átropos, a parca, cortar o meu fio…

7 comentários:

Suzana Toscano disse...

Caro amigo, é bem verdade que convivemos muito mal com a morte. Em contrapartida, beneficiamos de uma superprotecção muito tempo, tanto, que acabamos por nos convencer que ela pode não existir. Até que chega, sem remissão, e atinge os que tanto queríamos ter para sempre, mesmo contra toda a evidência.Nessa altura aprendemos tudo duma vez e ficamos duplamente órfãos. Ouvi uma vez dizer que só nos tornamos realmente adultos quando os nossos pais desaparecem, e é bem verdade. Talvez fosse tudo mais simples na época de que fala, com as práticas que conta, mas há um preço a pagar pelos cuidados médicoa acrescidos, pelos inúmeros recursos para os manter até serem bem velhinhos, e isso passa pelo nosso afastamento enquanto outros os tratam. Apesar de tudo, apesar de tudo, eu não trocava. E, com médicos com um profundo sentido de humanidade, como é o Prof. Massano Cardoso, até se consegue conciliar as duas coisas.
Um abraço amigo.

Anthrax disse...

Caro Prof. Massano,

Este post é fantástico. :)

Eu ía dizer que não sabia o que dizer, mas não é verdade. Falar de morte num blog parece-me tão apropriado como falar de outra coisa qualquer e é uma excelente forma de nos recordar da condição humana.

Acho que cada um tem uma maneira muito própria e muito privada de lidar com este assunto. Olhe eu, por exemplo, nunca liguei nenhuma à morte de membros da família que me eram próximos. Era impressionante o ar aluado com que ficava quando me davam a notícia de que alguém tinha falecido e nunca dei importância nenhuma a isso.

Bom, nunca dei importância até ao dia em que dei importância. O que eu sempre achei mais curioso (e até hoje não consigo explicar porquê), é que só dei importância 3 meses depois do acontecimento. A partir daí foi o cabo dos trabalhos durante 6 anos, onde podemos incluir diversas patologias que vão desde comportamentos verdadeiramente psicóticos, passando por episódios de "auto-mutilação" (não sei se é assim que se designa aquelas ideias tristes de, por exemplo, fazer arranhões nos braços com instrumentos pontíagudos ou queimar os lábios com clips em brasa), é claro que isto tudo acabou no médico. Mas não num psicólogo ou num psiquiatra, foi num de clinica geral mesmo (ok, dispenso comentários engraçadinhos do género «isso explica muita coisa», eu sei que explica).

Um dia, acordei e tinha passado tudo... o que é um bocado chato porque eu só me recordo de como começou, de resto tenho muito poucas recordações do durante e como acabou, mas foi um bocado louco. Agora que está tudo normal, passo sempre por peste insensível (rótulo bastante injusto diga-se).

Quanto às Parcas, ó prof. MC... não dá para escolher, assim, outras figuras mitológicas mais bonitinhas? É que a representação daquelas é sempre tão feínha.

Massano Cardoso disse...

Cara Suzana.
Escrevi, porque pensei em si. Ficam os belos fios. Não se esqueça.

Caro Anthrax.
Claro que há outras figuras mitológicas muito mais bonitas e agradáveis. Falarei delas noutra altura.
O seu comentário é notável e respeito-o muito. Acredite.

CCz disse...

Nunca mais consegui levar Miguel Esteves Cardoso a brincar, desde o dia em que, no Independente, escreveu a um colega da redacção, a confortá-lo sobre a morte do seu pai.

Suzana Toscano disse...

Eu sei. Já dei o seu texto a ler a outros que também precisavam, muito obrigada por ter sabido tão bem escolher o que dizer.Não me esqueço, como poderia?

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Esculpir palavras como quem constrói uma obra de arte, com sensibilidade, tacto e engenho, é um talento de quem teve as “mãos pequeninas” e soube deixar crescer o coração.
É esta humanidade interior que os governos dos Homens não podem subtrair…
Assim nós saibamos gerir as nossa amarguras e tristezas, filtrando-as pela candura do tempo que passa.
Belo momento de prosa com memória.
Sabe bem descansar neste texto.