Há algum tempo, como reacção defensiva à nausea que me provocaram certos acontecimentos, julguei-me insensibilizado perante a hipocrisia reinante na nossa vida colectiva, muito em especial a que é protagonizada pelos principais dirigentes políticos. Enganei-me. Ontem, no assim chamado "debate" na RTP1 entre os 12 candidatos que se apresentam a sufrágio para presidente da Câmara Municipal de Lisboa, não deixou de me incomodar a tendência para o julgamento moral de quase todos, a lembrar-me experiências sofridas de um passado que julgava ter esquecido.
De repente, apercebemo-nos da rendição ao discurso simplista e demagógico do Bloco de Esquerda, segundo o qual o mal do País vem dessa coisa horrorosa e assustadora, esse flagelo moral que na linguagem comum se designa agora pelos "interesses".
Esta doutrina oficializada pelo politicamente correcto, de que tanto gostam políticos e intelectuais, jornalistas e comentadores profissionais sempre atentos e obedientes ao mainstream, implica que os candidatos só são bons quando afastados dos interesses, próprios ou alheios. Podem ser os maiores indigentes intelectuais, não conseguirem dizer tá-tá três vezes seguidas, elaborar uma ideia por mais singela que seja. Mas são moralmente superiores, incorruptíveis e insusceptíveis de ser influenciados senão pela sua própria e santa visão do mundo. E melhores serão ainda quando não possuam quaisquer bens materiais, permitindo-lhes exibir um estatuto de honrados remediados, de orgulhosa classe média baixinha (só desmentida pelos bons cortes da roupa que alguns exibem), na qual se mantêm com os magros rendimentos que a política lhes proporciona.
Bom, bom, para ocupar o cargo de responsabilidade pública é o indivíduo sem história, sem passado, sem fazenda e sem interesses, pragmático e de preferência com carreira feita numa "jota", continuada como adjunto ou assessor de um qualquer governante, nacional ou local, que tenha feito este mesmo percurso.
O advogado conceituado, prestigiado, cujo saber é reconhecido, que luta pela saúde das empresas, que as defende perante as agressões contínuas do Estado e da multitude de poderes pretorianos, esse nunca que defende interesses ignóbeis, como são os do capital. Já o advogado que luta contra as iniquidades de túneis e auto-estradas, contra o betão, a favor dos trabalhadores, dos pobrezinhos, sempre ao lado das ONG por mais disparatadas que sejam as causas, pela cultura exótica e sempre as favor das minorias ainda que objectivamente privilegiadas, só esse, liberto de interesses, bacteriologicamente puro e impoluto por predestinação, é capaz de resistir a essa força monstruosa do tráfico de influências e da corrupção.
O arquitecto estudioso, capaz e com obra feita e reconhecida, famoso por isso e em consequência procurado pelos "interesses", esse jamais poderá ser um bom gestor público porquanto pouco importa o conhecimento e a competência ao serviço das causas públicas, nem que elas passem, como no caso de Lisboa, pela elevação de uma cidade a padrões comuns nas principais capitais da Europa. Estará ferido da suspeita, hedionda, de servir os "interesses". E jamais terá perdão perante os julgadores de carácter, nem mesmo que se despoje ali da pesada canga que passou a ser o seu atelier, renuncie publicamente ao seu pecaminoso passado ou se dispa publicamente das suas ligações profissionais, jurando pelo mais sagrado que alguma vez, depois de eleito, falará com aqueles que até ali lhe pagaram os honorários.
Já o arquitecto ou a arquitecta de quem não se conhece o risco ou um só projecto, nem que seja da casota de um canídeo, transformado em arauto dos valores imateriais, que diz combater o betão e se determine inimigo implacável dos monstruosos "interesses", esse sim é a inteligência que se requer para que não se continue a pecar.
A luta que se trava é, afinal, pelo lugar de monarca maior neste lamentável reino da hipocrisia.
4 comentários:
Tem toda a razão, caro Ferreira de Almeida.
É hipocrisia, para esconder, antes de tudo, uma luta pela sobrevivência. Qualquer um que se possa ter distinguido na sua profissão só por excepção não é arredado de qualquer acção de serviço público, pela simples razão de ser uma ameaça aos políticos profissionais.
Derrepente surgiu um grupo de gente a querer beneméritamente prestar serviço público à cidade, oferecendo os seus valorosos préstimos gratuitamente, sendo que para isso sofrerão prejuízo nas suas actividades profissionais. Caramba, perdoe-me o cepticismo caro Ferreira de Almeida, mas onde é que esta gente toda esteve até agora?
Ou... não teriam conhecimento da existÊncia de Lisboa e/ou do seu estado de degradação e agora ouviram falar de uma presidência não-sei-de-quê, d'uns senhores muito importantes lá da Europa que vêm cá fazer umas reuniões e coiso.
Hipocrisia?!
Na, amor incondicional à cidade e à causa pública, digo eu, até que a voz me doa!
Ora, prezado Bartolomeu, quero lá eu saber onde andava essa gente!
E se têm ou não amor a Lisboa! Esse é um problema de crença dos eleitores que farão a apreciação das pessoas e dos projectos, se é que existem!
O meu desabafo não tinha a pretensão de analisar o que cada um daqueles senhores vale como candidato a ESTAS eleições.O que quis expressar, ao correr da pena, é que não é para mim tolerável este ambiente que resvala sempre para a tentativa de ganhar através do assassinato de carácter dos adversários. Um insuportável hábito, normalmente utilizado por quem menos autoridade moral detém como, se se lembra, aconteceu por exemplo, nas últimas eleições presidenciais.
Enfim, pena tenho eu que não doa a voz a muitos na denuncia de métodos que tornam pouco decente esta democracia...
Ora, caro JMFA, é a democracia dos partidos. Como o PSD. Que se vão "lavando" em cada acto eleitoral.
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