Àquela hora a esplanada estava vazia. Ele era o único ali sentado, com um prato de tremoços e uma cerveja, a falar alto ao telemóvel para que pensassem que estava a ultimar um assunto urgente.
As poucas pessoas na rua apressavam-se a ir para casa jantar e os colegas do trabalho ainda estavam no escritório, em reuniões prolongadas ou a acabar os trabalhos que sempre sobravam ao fim do dia. Ele também tinha tido esse hábito, chegar tarde a casa, o miúdo já deitado à espera do beijo apressado de boa noite, amanhã vens mais cedo, pai? Eu queria jogar contigo o jogo que me compraste no Natal. E ele, rápido, prometia, talvez, filho, vamos ver, o pai tem muito trabalho mas vamos ver. E o garoto adormecia a fungar, já não acreditava mas insistia sempre, na esperança de que um dia fosse verdade.
Não era capaz de dizer quando é que tudo começou a correr mal, os colegas a esquecerem-se de o chamar para as reuniões, o director a falar-lhe com distância, ele, que tinha sido o mais temido, o mais presente. È verdade que tinha começado a beber, um dia um almoço mais prolongado, depois mesmo antes do almoço, e a seguir também, precisava daquilo, daquele tónico da alma, ao princípio era para se sentir bem, depois já não sentia nada sem aquilo. Chegava a casa com um humor desgraçado, largava aos gritos por tudo e por nada, lembra-se até dos ímpetos de violência, o filho refugiava-se no quarto e já não queria brincar com ele, a mulher perguntava-lhe, o que foi, o que foi, e ele fazia um gesto largo, deixa-me em paz, são preocupações, nada que te interesse, e ia preparar outra bebida.
Por uma ou duas vezes avisaram-no de que era melhor não ir à reunião, da vez que teimou saiu-se tão mal, disparatou, as veias do pescoço salientes e os olhos enevoados do álcool, gostava daquela sensação de que era tudo à distância, de que nada o atingiria, mais um copo e nada lhe importava, só mais um copo.
Quando lhe tiraram o cargo de responsabilidade disseram-lhe que devia tratar-se, era uma pena que se deixasse afundar daquela maneira, que não desse cabo da vida. Começou a sair mais cedo mas não ia para casa, a mulher e o filho não podiam saber, gastava as horas sem saber como e justificava a bebida como sendo o seu consolo e a sua única companhia.
E agora, que no emprego nem davam pela falta dele, agora que ficava a vaguear depois de almoço sem saber para onde ir, agora não podia chegar a casa e abraçar o filho, que ficou a viver com a mãe quando ela lhe arrumou as coisas numa mala e o mandou sair. Disse-lhe assim mesmo, sai, agora, nunca mais te quero ver. Imperiosa, desapiedada, numa fúria fria que não lhe deu espaço para mais nada. Pegou nas coisas, incapaz de se opor, lembra-se agora que até sentiu alívio por poder ir beber um copo sem ouvir recriminações. Ouviu vagamente o choro do filho, lá longe, no quarto, ainda se voltou para lhe ir dar um beijo e prometer que voltava mas esbarrou nela, na determinação daquele olhar duro e inclemente, disse em voz alta, até logo, filho, o pai já vem, e desceu as escadas apressado, como um fugitivo.
Escolheu aquela esplanada porque dali via as janelas da casa, àquela hora já a mulher e o filho estavam em casa, podia saber se estavam na sala ou na cozinha pela posição dos estores, não tardava já acendiam as luzes e até conseguia ver as sombras esbranquiçadas do écran da televisão na parede.
Bebeu o último golo de cerveja e levantou-se, entorpecido, para ir apanhar o metro para o outro lado da cidade. Ao deixar as moedas na mesa de metal manchado, reparou que a mão lhe tremia. São saudades, pensou, não posso continuar assim. Amanhã deixo de beber, vou prometer-lhe que deixo de beber. Boa noite, filho, o pai promete que volta depressa, espera por mim.
As poucas pessoas na rua apressavam-se a ir para casa jantar e os colegas do trabalho ainda estavam no escritório, em reuniões prolongadas ou a acabar os trabalhos que sempre sobravam ao fim do dia. Ele também tinha tido esse hábito, chegar tarde a casa, o miúdo já deitado à espera do beijo apressado de boa noite, amanhã vens mais cedo, pai? Eu queria jogar contigo o jogo que me compraste no Natal. E ele, rápido, prometia, talvez, filho, vamos ver, o pai tem muito trabalho mas vamos ver. E o garoto adormecia a fungar, já não acreditava mas insistia sempre, na esperança de que um dia fosse verdade.
Não era capaz de dizer quando é que tudo começou a correr mal, os colegas a esquecerem-se de o chamar para as reuniões, o director a falar-lhe com distância, ele, que tinha sido o mais temido, o mais presente. È verdade que tinha começado a beber, um dia um almoço mais prolongado, depois mesmo antes do almoço, e a seguir também, precisava daquilo, daquele tónico da alma, ao princípio era para se sentir bem, depois já não sentia nada sem aquilo. Chegava a casa com um humor desgraçado, largava aos gritos por tudo e por nada, lembra-se até dos ímpetos de violência, o filho refugiava-se no quarto e já não queria brincar com ele, a mulher perguntava-lhe, o que foi, o que foi, e ele fazia um gesto largo, deixa-me em paz, são preocupações, nada que te interesse, e ia preparar outra bebida.
Por uma ou duas vezes avisaram-no de que era melhor não ir à reunião, da vez que teimou saiu-se tão mal, disparatou, as veias do pescoço salientes e os olhos enevoados do álcool, gostava daquela sensação de que era tudo à distância, de que nada o atingiria, mais um copo e nada lhe importava, só mais um copo.
Quando lhe tiraram o cargo de responsabilidade disseram-lhe que devia tratar-se, era uma pena que se deixasse afundar daquela maneira, que não desse cabo da vida. Começou a sair mais cedo mas não ia para casa, a mulher e o filho não podiam saber, gastava as horas sem saber como e justificava a bebida como sendo o seu consolo e a sua única companhia.
E agora, que no emprego nem davam pela falta dele, agora que ficava a vaguear depois de almoço sem saber para onde ir, agora não podia chegar a casa e abraçar o filho, que ficou a viver com a mãe quando ela lhe arrumou as coisas numa mala e o mandou sair. Disse-lhe assim mesmo, sai, agora, nunca mais te quero ver. Imperiosa, desapiedada, numa fúria fria que não lhe deu espaço para mais nada. Pegou nas coisas, incapaz de se opor, lembra-se agora que até sentiu alívio por poder ir beber um copo sem ouvir recriminações. Ouviu vagamente o choro do filho, lá longe, no quarto, ainda se voltou para lhe ir dar um beijo e prometer que voltava mas esbarrou nela, na determinação daquele olhar duro e inclemente, disse em voz alta, até logo, filho, o pai já vem, e desceu as escadas apressado, como um fugitivo.
Escolheu aquela esplanada porque dali via as janelas da casa, àquela hora já a mulher e o filho estavam em casa, podia saber se estavam na sala ou na cozinha pela posição dos estores, não tardava já acendiam as luzes e até conseguia ver as sombras esbranquiçadas do écran da televisão na parede.
Bebeu o último golo de cerveja e levantou-se, entorpecido, para ir apanhar o metro para o outro lado da cidade. Ao deixar as moedas na mesa de metal manchado, reparou que a mão lhe tremia. São saudades, pensou, não posso continuar assim. Amanhã deixo de beber, vou prometer-lhe que deixo de beber. Boa noite, filho, o pai promete que volta depressa, espera por mim.
9 comentários:
1. reformule-se então a máxima: «por detrás de "certos" homens, existe "sempre" uma grande mulher»
2. grandioso texto, DRª. Suzana… esperável como sempre, de tão excelsa escritora.
3. esta estória reflecte a realidade de demasiadas pessoas na sociedade actual. Sina, dirão, desleixo, mau feitio… a verde é que a cada passo, tropeçamos em casos semelhantes sem que sejamos capazes de os compreender e, perante os quais nos sentimos verdadeiramente impotentes.
4. há dias recebi um mail, irmão daqueles vários que circulam pela net, o qual acompanhado de edílicas paisagens e de uma música “zen” nos ia apresentando na forma de legendas, algumas metáforas comparativas com a vida que se vai construindo. uma delas, colocava-nos uma mochila às costas, que íamos enchendo de pedras pelo caminho, sendo que essas pedras representavam as coisas negativas. a certa altura, dávamo-nos conta do peso excessivo da mochila. há dias também, assisti na TV a um filme com o Jorge aquele rapaz que faz o anúncio do café e as delícias do mundo feminino. nesse filme o actor trabalhava numa empresa cuja actividade consistia em despedir pessoas de outras empresas. um drama também actual, uma desumanidade monstruosa, mais um reflexo dos tempos e das metodologias actuais de gestão de empresas e dos seus recursos humanos. no desempenho desta tarefa, o actor servia-se também da mochila para fazer convencer os iminentes despedidos da vantagem que poderiam retirar dessa sua nova condição.
5. na verdade, sem que sejamos capazes de perceber, vamos acumulando durante o nosso caminho, por diversos motivos e centrados em diversos objectivos, algumas pedras com que vamos carregando a nossa mochila. primeiro, porque achamos que as pedras são pequenas e não nos irão causar qualquer incómodo, depois, porque percebemos que, para continuar naquele caminho, temos forçosamente de continuar a encher a mochila de pedras. só quando não conseguimos dar mais um passo, porque o peso da mochila se tornou insuportável… é que paramos… nessa altura, estamos física e psicologicamente “estoirados”.
6. nesse momento, teremos sorte, se ao nosso lado se encontrar alguém com reservas suficientes de força anímica, capaz de nos segurar a mão e de nos conduzir ao reencontro com nós mesmos.
Cenas da vida quotidiana, escritas de forma simultaneamente impressiva e comovente, como só a Suzana sabe fazer.
Já se torna um lugar comum escrever isto, mas é MESMO um enorme prazer ler os textos da Suzana.
Com a devida permissão, faça minhas as palavras dos Drs. Pinho Cardão e Ferreira de Almeida.
É mais uma história de vida escrita de forma singular, creio que sentida, que confrange e aperta o coração.
É uma história triste como tantas outras, como as contadas diariamente por centenas de jovens aos pais, enquanto os olham com serenidade, e dizem: - Sabes pai, afinal os gajos não me renovam o contrato…, dizem que perderam uma parte do mercado!...
A besta que apelidou a juventude de hoje - rasca, não sabe o que é um olhar sereno, doce, tranquilo e resignado e muito menos o olhar de um pai revoltado e impotente…
Um perfil comum e preocupante. Vidas que desaparecem com o álcool e como o álcool, evaporam-se...
E para simplificar e evitar ser repetitiva, faço minhas (com a devida vénia) as palavras dos caríssimos Bartolomeu (“esperável como sempre, de tão excelsa escritora”), Pinho Cardão, JM Ferreira de Almeida e JotaC. : )
Muito bem vista essa alegoria das pedras na mochila, caro Bartolomeu. E é verdade que para tudo é preciso um pouco de sorte.
Obrigada, caros amigos, as cenas da vida real são sempre uma fonte de inspiração e o 4r é um estímulo para olharmos as coisas de modo a poder contá-las aqui.
Cara Suzana,
é um relato emocionante, suponho ficcionado mas inspirado em alguma história real, de um grave problema nacional que fractura muitas famílias portuguesas. Muito mais que outras causas "de moda". E que vai continuar a afectar, pois sabemos que os jovens cada vez bebem mais.
Mas o relato incide no carácter descartável, efémero e muitas vezes tóxico das relações empresariais. Remete-nos para a reflexão sobre o custo de oportunidade que assumimos nas nossas vidas quando preterimos a família, os amigos e as coisas que nos deixam felizes para assumir uma relação de dependência muitas vezes doentia da empresa a quem vendemos o nosso tempo e competências profissionais.
Vale a pena reflectir no que procuramos e no que nos faz realmente felizes, porque a vida são dois dias e o Carnaval três.
Caro JP, excelente comentário, a chamar a atenção para os excessos de várias naturezas que acabam por arruinar a vida. Infelizmente, não é preciso ter muita imaginação para escrever esta história, basta olhar e ver...
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