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segunda-feira, 9 de julho de 2007

“ O Tio Manel”...

Para o Bartolomeu...


A família do meu pai era numerosa e muito humilde. O tio Manel fazia parte de uma fratria de doze irmãos. Carpinteiro, de boa aparência, mesmo quando o conheci já com alguma idade, tinha uma fama dos diabos pelas conquistas efectuadas nas aldeias e lugares das redondezas. Atribuíam-lhe inúmeras histórias, algumas mesmo rocambolescas. O caso de uma prisioneira, que dizem ter engravidado do meu tio, durante as suas acções caritativas, já que lhe ia fornecer mantimentos, é paradigmático deste D. Juan que conseguiu, não se sabe como, ludibriar os carcereiros da velha prisão da praça!
O que é certo é que da fama não se livrava. Ouvia, frequentemente, a minha avó e os irmãos (alguns do mesmo estilo!) a falar das tropelias do Manel. Cá fora era sempre a mesma coisa, o Manel para aqui, o Manel para acolá, o Manel pai de sicrano ou pai de sicrana.
Um dia, não devia ter mais de seis a sete anos, atrevi-me a perguntar-lhe se era verdade que fosse pai de tantos filhos. Olhou-me com o olhar mais querido, brilhante e profundo do mundo, porque o tinha, de facto, e disse-me, rindo, que isso eram histórias do povo. Que não acreditasse em tudo o que ouvia, nomeadamente a minha avô, que, por sinal, até era bem discreta nestas coisas.
Gostava imenso dele e lembro-me da sua casa, muito humilde, apenas com duas janelas pequenas, com uma minúscula cozinha de lareira, uma salita e dois pequenos quartos, um dos quais, virado para o Rossio, albergava um filho com demência profunda que viveu até aos dezoito anos e que adorava de uma forma especial. A cama de ferro encostada à parede, deixava um espaço tão reduzido que, quando alguém quisesse entrar ou sair, uma de duas pessoas tinha que sair. Pedia-lhe para ir vê-lo. Dizia que podia, mas ele não sabia brincar, nunca soube. Nunca falou. Apenas conseguia ver os belos entardeceres com o sol a inundar o quarto numa imagem deslumbrante, em que tudo ficava dourado. O ouro dos pobres, que nunca mais vi em lado nenhum.
Na cave, numa pequena carpintaria improvisada, fez-me muitos brinquedos. O mais belo de todos foi uma espada de madeira polida com gume, pontiaguda e macia ao toque que, majestosamente, passeava pela vila e pinhais. Fazia inveja a todos os meus amigos. Era a época do Robin dos Bosques e do Xerife de Nottingham. Com aquela espada ninguém me vencia. Enquanto estava a fazê-la, perguntei-lhe se era verdade que tinha levado os filhos quando se casou com a tia Lídia. Riu-se e disse que sim! Antes que lhe pudesse perguntar, porque é não se tinha casado antes de ter os filhos, respondeu-me: - Sabes, o casamento é uma festa, onde se come e se bebe bem. Os filhos já tinham os dentes todos e, por isso, também tinham direito a comer e a beber. Assim fomos todos à festa!
Um dia morreu. No funeral apareceram algumas pessoas que desconhecíamos e se desconheciam. Alguém perguntava: - Quem é aquela? Outro respondia: - Hum! Pelo aspecto deve ser filha do Manel. Não vês os olhos? É filha de fulana, uma moçoila dos diabos que o Manel namorou lá para as bandas de N... – E aquele rapaz? Hum, também deve ser filho. - E a rapariga de cabelos louros, além, um pouco mais afastada? – Hum! Também é, não se vê? E as conversas continuavam a apontar para mais um ou outra que respeitosamente tinham vindo ao funeral do progenitor! Olhavam-se uns aos outros. Alguns sabiam que eram meios-irmãos, outros não, mas sentia-se no ar uma verdadeira cumplicidade.
Só me apeteceu dizer ao Tio Manel: - Com que então histórias do povo!...
Imaginei-o com o seu olhar mais querido, brilhante e profundo do mundo, porque o tinha, a dizer: - “Cada um faz o que pode e a mais não é obrigado”...

3 comentários:

Bartolomeu disse...

Isto a vida é cheia de ordens, por isso, e porque ao fim e ao cabo, elas são incontornáveis, vou começar pelo Lima. Para além dos adjectivos com que o caracterizei no post anterior, obrigo-me a acrescentar-lhe inteligente. Está visto que ao dirigir-se-lhe por excelência, caro professor, ele, o Lima, não estava somente a utilizar um termo banal e curriqueiro. Não senhor, aquele homem de fina sensibilidade percebeu à distÂncia a excelência da sua pessoa, caro professor. Seguindo a ordem, cumpre-me agora duplamente agradecer-lhe este post, a que, se me permite, chamarei de partilha, comunhão e lavagem-d'alma. Como muitíssimo bem ficou descrito e perfeitamente se entende o tio Manel era possuidor de um coração de ouro, talvez os por-do-sol que vossa excelência tão poeticamente descreve, lhe penetrassem a alma e porque transbordassem, ele, o HOMEM de olhar doce sentisse vontade de partilhar tamanha benção, distribuindo amor.
Tudo isto parece exacerbadamente poético, porém, as gandes almas, não cabem nos conceitos de pequenêz daqueles que se limitam a guardar a sete chaves os momentos e prazeres que a vida lhes concede.
Daqui, um enorme obrigado ExcelÊncia, por ter revelado e partilhado o GRANDE tio Manel.
Para o tio Manel, o desejo da paz eterna e de um por-do-sol a dourar-lhe o caminho celestial.
Agradecido Excelência!

Pinho Cardão disse...

Caríssimo Professor:
Bonita história, escrita com muita sensibilidade!...
Parece-me que o tio Manuel era um sujeito sensível e bem disposto.
Como o meu amigo, para além de ter muitas e outras altas qualidades,também recolheu em grau elevado aquelas duas,perguntava-lhe se a outra suprema qualidade também lhe adorna o curriculum...

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Grande contador de histórias, de histórias verdadeiras!
E tantas e tão bonitas histórias com que nos tem deliciado. Estamos a ficar muito bem habituados...