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quinta-feira, 4 de maio de 2006

Traço contínuo


Há uma fotografia dele, fantástica, com o braço em ângulo recto, todo força e firmeza, e a garota encarrapitada nele, como se fosse um baloiço, a rir, a rir, a rir.
Há outra com ele a caminhar, com aquele passo meio desmanchado, e uma das filhas pequenas pela mão, mal lhe chegava aos joelhos, um chapelinho branco meio torto e a outra mão a agarrar o pacotinho de milho para dar aos pombos, ali junto à Igreja de S. Domingos.
E há filmes, dezenas, centenas de filmes, já meio estragados de tanto serem vistos e revistos, porque “passar filmes” era uma etapa obrigatória em qualquer festa de família. Todos feitos por ele, filmados, revelados, muitas vezes ilustrados com brincadeiras e truques que deixavam a garotada presa ao écran, que se desenrolava na sala. Tirava-se um quadro que tivesse um prego bem forte, as luzes apagadas e todos corriam a sentar-se no chão a ouvir os relatos e largar em gritaria quando ele contava a história de maneira diferente do costume. “Não é assim, pai! Esta bicicleta não era a do pneu furado!”, “O macaco não mordeu nada a mão da M., ela é que lhe puxou o rabo!”
O momento alto, porém, era quando ele começava a rebobinar o último filme, a dizer que a máquina de projectar já estava a ferver, “é hora da malta toda ir dormir, já chega por hoje” e afinal ainda ali estava a caixa com o filme do “Lobo da Cabeleira Comprida”. Era um desenho animado a preto e branco, com legendas que ele lia todas trocadas para nos irritar, fez o mesmo truque com os netos, o filme já todo colado, a máquina encravava-se e já sabiam de cor os bocados que faltavam. Mas nunca atinavam com a frase certa mesmo depois de terem aprendido a ler, porque o que lhes ficou na memória era o avô a pregar partidas e a dizer que os cordeiros é que faziam casacos com a pele do lobo. E que isso só se via porque a gola do casaco era a cabeleira comprida, que ficava de fora mesmo quando o lobo se disfarçava de carneirinho.
É dessas sessões que vem a história da cigarra e da formiga que acaba bem, com a formiga a abrir a porta à cigarra e ela, meio enregelada, a acolher-se na generosidade da outra. Uma das netas um dia revoltou-se porque a professora “contou a história mal” e disse que a formiga fechou a porta na cara da cigarra. “Temos que lhe mostrar o filme do avô, mas se não for ele a ler as legendas ela não vai perceber…”, dizia ela. Pois temos.
Ficaram milhares de histórias para contar, como uma espécie de linguagem comum, e ele no meio de todas elas, como um traço nítido, inconfundível, construindo uma história única.

8 comentários:

Massano Cardoso disse...

Não basta contar histórias. É preciso criar e definir um sentido. São tão marcantes que moldam o nosso futuro. Agora que sou avô como gostaria ser como o “avô”!…

Suzana Toscano disse...

Não tenho dúvidas de que vai ser mesmo. E olhe que a bitola é bem alta!

Anónimo disse...

Seja bem regressada Susana ao aconchego destes desconhecidos comentadores.
Que a dor da separação seja mitigada pela presença, às vezes quase física, da memória, são os meus votos. O seu texto, aliás, é bem a demonstração desta capacidade intangível que o ser humano tem, quando saudável, de procurar sempre ser feliz. Só assim é possível valorizarmos a memória daqueles que connosco viveram procurando construir um projecto de afectos. E, não menos importante, só assim poderemos agradecer a inspiração da vida em harmonia com os “nossos” ainda presentes.

João Melo disse...

faço minhas as palavras do Félix.embora a eloquência não seja tão grande como a dele....

crack disse...

É sempre um prazer constatar que não desistiu. Revejo-me, um pouco, nesta sua memória, porque tive a sorte de ter visto o meu pai ser um avô assim.

Anthrax disse...

Ora seja muito bem aparecida, por um par de dias ainda pensei que tivesse tido uma síncope ou assim... estou a brincar ;))

Este texto assinala um excelente regresso, fez-me lembrar a minha avó. :)

Suzana Toscano disse...

Já tinha imensas saudades de vir até aqui, ainda bem que "longe da vista" não é "longe do coração"!

Suzana Toscano disse...

Já lá fui, Ricardo, é uma linda história. Muitos dos livros que li e de que gostei muito ficaram muito tempo á espera que as minhas filhas pudessem e quisessem lê-los. E muitos foram um sucesso, a prova é que boa parte deles correm pelos amigos e desapareceram da minha estante! Mas mesmo assim o saldo é muito positivo.
Obrigada.