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quarta-feira, 30 de março de 2011

“Arte de curar”

O papel do placebo é conhecido desde há muito tempo e constitui um dos mais poderosos “medicamentos” que temos ao nosso dispor, facto que nos leva a equacionar o papel da mente no corpo e do corpo na mente.
Uma percentagem muito significativa dos médicos utilizam-no, não sob a forma clássica de comprimidos de açúcar ou de farinha, mas através de alguns remédios que não têm grande eficácia nas queixas dos doentes. Esta atitude, aparentemente aceitável, já que o que está em causa é o bem-estar das pessoas, começa a levantar problemas éticos, porque viola a relação de confiança entre o doente e o médico, em que o primeiro acredita estar a ser tratado. Muitos bioeticistas têm chamado a atenção para esta mentira, a ponto de a Associação Médica Americana proibir que se utilize placebos sem o consentimento informado dos doentes. Aqui levanta-se, de imediato, a seguinte questão: então, se o doente sabe que vai tomar um placebo, uma substância que é inerte, ineficaz, logo, não vai beneficiar na sua utilização. Não, curiosamente não é bem assim, porque estudos recentes, efetuados em crianças com perturbação de hiperatividade com défice de atenção e em adultos com síndrome do cólon irritável, por exemplo, revelaram que, mesmo sabendo que estão a tomar um placebo, houve melhorias significativas das situações clínicas. Os médicos, ao prescreverem produtos não eficazes, explicam por que o fazem, afirmando que nalgumas pessoas se acompanham de resultados positivos. Desta forma, comportam-se, eticamente, de uma forma correta. Tudo depende do modo como abordam o assunto. A forma como o fazem é muito importante, já que, presumo, condiciona a resposta. Apesar de haver outros pormenores interessantes neste fenómeno, não queria deixar de chamar a atenção para algo de mágico por parte do clínico. De facto, há algo de magia em todo este processo, que é dizer ao doente: olhe, vai tomar este produto que é ineficaz, mas, por razões que ainda não conseguimos descortinar totalmente, já que a relação mente-corpo é das coisas mais complexas que se conhece, poderá obter alguns ganhos substanciais no seu estado de saúde, não sei se será o seu caso, mas o melhor é “esperar e ver”. A assunção deste comportamento respeita os princípios éticos e deveria ser extensível a muitas outras atividades que se dedicam à “arte de curar”, arte que todo o ser humano pratica desde todo o sempre. O que me incomoda é o facto de várias práticas da “arte de curar” quererem obter o estatuto científico, sinal de credibilidade no mundo atual. Estar sujeito ao escrutínio científico é um imperativo moral e ético, a fim de que possamos compreender e lutar de forma correta contra muitos fenómenos que nos atormentam, sem arrogância, com humildade e, sobretudo, com respeito pelos outros. O que acontece na realidade é que muitas das ditas alternativas se arvoram de “científicas” sem o serem e quando são sujeitas ao crivo da ciência não se descortinam os mecanismos e as explicações para os seus “sucessos”, porque os têm, indiscutivelmente, já que o ser humano, quando procura a cura, cura-se, nem que seja momentaneamente, usando para o efeito tudo o que encontra pelo caminho, desde Fátima a Vilar de Perdizes, passando pelo Serviço Nacional de Saúde, ou pelo padre da freguesia ou aceitando os conselhos de uma vizinha, mais ou menos curiosa, que manipula “segredos” vindos do baú dos seus ancestrais. Não tenho muito a comentar sobre alguns operadores da “arte de curar”, uns mais hábeis, outros menos, uns com técnicas sofisticadas, outros com técnicas discutíveis, mas apenas os que se querem encostar à “medicina científica” para poderem usufruir do atributo “científico”, que não o têm, nem cultivam, e, então, sob o ponto de vista ético, nem vale a pena comentar. Assusta-me o facto de começar a ver que certas escolas começam a entreabrir as portas a esses mundos paralelos, acabando por lhes outorgar no futuro um estatuto que tem de ser comprovado. Essas áreas merecem ser estudadas profundamente, sujeitas à investigação e, caso se comprove que na maior parte dos casos não passam de meros placebos, então, têm, frontalmente, de dizer que são "técnicas" ou "produtos" ineficazes, mas podem ter efeitos positivos na saúde de algumas pessoas. Aceitarão entrar nessa onda? Duvido muito, mas congratulo-me pelo facto de a medicina começar a ter atitudes como as que relatei no início deste texto, revelando que a sua grandeza emergiu no momento em que começou a cientificar-se, meados do século XIX, e que mantém uma pujança ímpar, agora, em termos éticos que podemos e devemos cultivar.

1 comentário:

Bartolomeu disse...

«“arte de curar”, arte que todo o ser humano pratica desde todo o sempre»
Este pequeno trecho da frase lembrou-me o capítulo de um livro que um amigo me ofereceu, faz já algum tempo. Trata.se de um fac-simile de uma obra intitulada "Medicina Theologica, ou Supplica Humilde,..."
O capítulo que me recordou, é o XVIII e resume o seguinte: «Nem todas as drogas que alguns Medicos gabão, são geralmente antiafrodisiacas para todos»
Chamo a atenção do caro Rui Fonseca, para o facto de os "erros" de ortografia, se deverem ao facto de transcrever um texto de mil e oitocentos...
;)