1.Entre as reacções governamentais e de opinadores afins, de cavada insatisfação, ao já ultra-comentado discurso de posse do Presidente da República, merece realce a queixa pelo facto de o Presidente não se ter referido à “situação internacional” – pretendendo com isto significar que essa referência teria amenizado a dureza das críticas ínsitas no discurso.
2.Parece-me que está aqui uma prova – mais uma prova aliás – da falta de realismo que os responsáveis governamentais têm exibido com crescente intensidade à medida que o tempo vai passando e os cenários-rosa que se habituaram a alimentar vão caindo, uns atrás dos outros, sob a influência nefasta dos ventos gelados que sopram dos mercados financeiros...
3.Com efeito, a referência à situação internacional, nesta altura dos acontecimentos, só poderia agravar, em vez de amenizar, a dimensão da crítica, ao contrário do que pretendem os responsáveis governamentais...
4.Não nos podemos esquecer do facto de, em 2010 em especial, o desempenho da economia portuguesa ter beneficiado significativamente do crescimento dos principais mercados de destino das nossas exportações: Alemanha (+16,4%), Espanha (+13,1%), França (+9,9%), Reino Unido (+10,7%), Holanda (+22,1%), Itália (+15,9%), EUA (+31,7%).
5.Os números indicados entre () referem-se ao crescimento das exportações de mercadorias portuguesas, em 2010, para cada um daqueles mercados, as quais contribuiram, de forma decisiva, para manter o PIB a flutuar...
6.E o próprio Governo ainda recentemente se ufanou, até à saciedade como é sabido, deste crescimento das exportações - como se lhe devesse o mérito desse desempenho, quando na verdade esse desempenho se ficou a dever (i) à recuperação das economias externas que são nossas parceiras comerciais e (ii) ao esforço das empresas nacionais para se manterem competitivas.
7.Será que o Governo já se esqueceu desse sucesso com as exportações, de forma tão entusiástica celebrado por exemplo no Congresso das Exportações há pouco mais de 15 dias? E terá o Governo a ousadia de admitir que tal sucesso teria sido possível sem a ajuda da “situação internacional”?
8. É curioso como se vão alterando as opiniões (não digo convicções pois convicções parece só existir a de fugir à realidade...) tal como o camaleão muda de cor à medida que vai mudando a sua base de apoio...
9.Neste caso, ao lamentar que o Presidente tivesse esquecido a situação internacional, o Governo evidencia até uma ponta de masoquismo, pois o Presidente poderia ter concluído o seu discurso nos seguintes termos: “E tudo isto apesar da ajuda que recebemos da situação internacional em 2010 e que continuamos a receber ...bem pior seria a nossa situação sem essa ajuda...”.
6 comentários:
«não se ter referido à “situação internacional”»
Nada como arranjar um bode expiatório para as nossas insuficiências.
É da psicologia/lei das compensações.
O que apenas denota a 'maturidade' ou a 'responsabilidade' destes artistas.
Não tivessem sido os mercados, teríamos agora 100 mil cheques bebés de incentivo à economia das famílias.
Ponto 9: de antologia.
Vale, que ainda temos o Mendonça: fechamos o Intercidades para Beja mas pomos lá um Airport.
Caro Tavares Moreira,
Na minha opinião o mal de toda esta discussão (talvez o maior problema com que Portugal se confronta) é que a política nacional contém uma gente nova com a qual não se pode sequer argumentar como aqui está a fazer, tal o nível a que está a chegar o "debate". É quase como debater os direitos humanos com o senhor da Líbia. Não é com estes que nós vamos lá e com eles nunca iremos a lado nenhum. E não estou a colocar a esquerda de um lado e a direita do outro, até porque o PCP actua de modo civilizado no seu quadrante, podendo-se apenas discordar ou não. Dou por certo que se a televisão passasse hoje os debates na AR dos anos 80, muita gente ficaria chocada com o caminho que tomámos.
Caro BMonteiro,
Em matéria de retórica da desculpabilização, como bem sabe, a panóplia de instrumentos é vasta: neste caso é a "siuação internacional", mas tb há (i) a "crise do Euro" (com o Euro em reforço nos mercados internacionais),(ii) a "crise sistémica da Europa" (expressão enigmática, mas repetidamente utilizada pelo PM, por exemplo), (iii) a "inacaeitável demora da Europa em encontrar soluções para a crise" (expressão do Presidente da AR, como se a Europa tivesse de curar dos seus filhotes mais indisciplinados como prendadas criaturas dignas de todo o enlevo e consolo), (iv) a "afronta das agências de rating" (esta deverá ser retomada em breve), etc, etc.
Uma lista interminável de bodes expiatórios, cuja função é ocultar a verdadeira e fundamental causa das dificuldades que enfrentamos: a incompetência e o equívoco sistemático das opções de política económica, que persistem cheios de saúde!
Caro Flash Gordo,
Talvez tenha razão, por isso é que o "beco" não terá mesmo saída...quando não existe um entendimento mínimo dos problemas, será possível resolve-los?
Recordo, num instante, aquando de uma intervenção que fiz na AR em 2003/2004, chamando a atenção para a insustentabilidade dos desequilíbrios que a economia portuguesa evidenciava - e eu estava sentado na bancada da então maioria - ser interrompido por um àparte de um ilustre deputado, hoje luzido e loquaz membro do Governo, nestes termos "Isto é um discurso do passado!"
Quer melhor?
Caro Tavares Moreira
Escolher racionalmente é um acto adulto algo que, em Portugal, temos o hábito de esqueçer.
Apresentar uma solução como inevitável é iludir a auto determinação do acto e, essencialmente, eliminar a responsabilidade. (Normalmente, não permite as escolhas mais acertadas e, certamente, não consegue obter uma adesão consensual alargada. Apenas tem por efeito servir de justificação para a acção).
Estas duas ilacções, podem ser retiradas do discurso de posse do PR.
Em direito existem duas figuras interessantes: "a gestão de negócios" e "estado de necessidade".
(Vou poupar-lhe a definição).
Após ouvir, ler e reler o discurso do PR restam-me duas interrogações:
a) Face à situação em que nos encontramos e na ausência dos responsáveis, estão reuniadas as condições para recorrermos à gestão de negócios?
b) A situação é tão grave e a inacção tão grande que o estado de necessidade pode ser invocado?
Como vê, infelizmente, estamos em face de acções movidas pela inevitabilidade...
Neste contexto, invocar a situação internacional é, no meio de uma tempestade, culpar a temperatura ambiente pela força do vento.
Cumprimentos
joão
Muito bem, caro João, é exatamente por isso que a situação internacional foi considerada em falta...
Caro João,
Na altura em que escrevo estas breves linhas, parece que mais do que nunca estarão criadas as condições para recorrermos à gestão de negócios...em versão altamente atribulada, é certo!
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