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terça-feira, 1 de março de 2011

A tragédia da "Estabilidade"...

1.Dos tempos já longínquos em que estudei Direito das Obrigações, seguindo os manuais do espantoso jurista que foi Manuel de Andrade – por muitos ainda hoje considerado o maior juris-civilista português de sempre - ficou-me na memória a original teoria de um autor italiano Oppo acerca das obrigações naturais (dívidas de jogo e dívidas prescritas, por exemplo).
2.Oppo referia-se à “tragédia” das obrigações naturais que, segundo ele (e com razão) só tinham verdadeira existência, como se de obrigações civis se tratasse, no momento em que...morriam!
3.O fundamento para esta curiosa teoria está no facto de as obrigações naturais terem, como elemento principal, o seu cumprimento não ser exigível pelo credor...mas se o devedor pagar, paga bem, não podendo exigir a restituição do que tiver pago!
4.Percebe-se assim que estas obrigações naturais só adquiram característica de verdadeiras obrigações quando o devedor, a seu livre arbítrio, resolve pagar, “matando” a obrigação...aí sim, transformam-se em obrigações civis pois o devedor não pode dizer que pagou mal, que a obrigação era apenas natural...pagou, está pago e bem pago, como se a obrigação fosse de outro tipo!
5.Parece-me que esta teoria de Oppo pode ser-nos útil para a análise da decantada teoria da Estabilidade, hoje “grande” (e provavelmente derradeiro) argumento dos Incumbentes governamentais para justificar a sua permanência no poder...
6.Tal como Kadafi diz que o Povo líbio o ama, também os Incumbentes dizem que o Povo português deseja Estabilidade...foi muito curiosa por exemplo a forma como tentaram contornar a derrota na noite das eleições presidenciais de 23 de Janeiro, explicando que o Povo deseja estabilidade...ou seja(nessa interpretação) o Povo deseja que quem está no poder lá permaneça, eles incluídos...
7.Afigura-se-me, no entanto, que existe aqui um lapso de raciocínio, pois o Povo parece estar desiludido com a dita Estabilidade se ela significar a manutenção dos Incumbentes...
8.A Estabilidade em questão identifica-se hoje inapelavelmente (bem ou mal, provavelmente mais bem que mal) com a continuação de um projecto que se traduz (i) no empobrecimento progressivo dos cidadãos, (ii) no endividamento galopante do País, conduzindo a um garrote financeiro dos particulares e das empresas, (iii) no crescimento imparável do desemprego, (iv) na excessiva e mesmo sufocante intervenção do Estado em muitas áreas da actividade económica e social para as quais não está preparado, (v) no consequente desperdício de recursos escassos que atinge níveis sem precedente, (vi) em apostas falhadas em projectos que comprometem o futuro das novas gerações, (vii) em regalias injustificadas distribuídas a esmo aos apaniguados do regime sem curar de distinguir em função das competências ou das qualificações, etc, etc..
9.Uma Estabilidade destas só por graça (de muito mau gosto) pode ser usada, nas actuais circunstâncias do País, como argumento fundamental de acção ou de escolha política...
10.O melhor que se lhe pode desejar é que essa Estabilidade tenha a mesma sorte trágica das obrigações naturais segundo Oppo – ou seja, que só exista como real Estabilidade no momento de morrer...porque só aí estaremos verdadeiramente em condições de colher os seus benefícios...

5 comentários:

Gonçalo Correia disse...

Quanto mais, melhor

Era uma vez um défice que vive nas bocas do mundo. Dia sim, dia sim, o défice dá sinais de vida. Há mais défice para além da vida! Muito mais, infelizmente. Com mais ou menos austeridade, o défice permanece bem activo e devastador, alimentando a insustentável gula do Gigante (o buraco do Estado), claro. Qual parasita social! E, paulatinamente, a economia vai definhando. Contra factos não há argumentos.

Nestas condições, a existência do défice assemelha-se, de facto, a um parasita num organismo debilitado. Pouco a pouco, ganha força à custa de outros, a começar pelos mais fracos. Destrói tudo o que lhe apareça à frente, sobretudo empresas e empregos. Vale quase tudo, por enquanto, menos tirar olhos. E o Gigante assiste, impávido e sereno, a tal espectáculo deprimente. Pudera! Grão a grão, o buraco vai aumentando.

A falta de vergonha, extinta há algum tempo, permite que muitos se regozijem com a utilização de truques contabilísticos habilidosos, mas igualmente lodosos. Ou seja, a contabilidade criativa que transforma fundos de pensões em pozinhos orçamentais. Realmente, é muita criatividade para tanta trafulhice. As aparências iludem, alguns... Mais tarde ou mais cedo, pagaremos bem caro tais números ilusionistas miseráveis. Não há almoços grátis, definitivamente. Os números reais não enganam! Como o algodão…

Deste modo, repetem-se os PEC’s (Programa de Estabilidade e Crescimento). Como em qualquer sequela cinematográfica, a paciência esgota-se. Reparem, até a própria designação é falaciosa, logo, chunga. Miseravelmente, chunga. O que é que esses programas têm de estabilidade? Bem, crescimento só se for da carga fiscal. O Gigante, por sua vez, adora PEC’s. Quantos mais, melhor! Se a aldrabice pagasse impostos, rapidamente teríamos superávite em vez de défice.

Nota final: qualquer semelhança com uma realidade perto de si, é pura coincidência; ou talvez não.

Anónimo disse...

Excelente, meu caro Tavares Moreira

Anónimo disse...

Para as pessoas que montam sistemas públicos aparentemente organizados que visam convidar cidadãos em pré-reforma a participr em cursos remunerados de modo a retirá-los das estatísticas do desemprego, enganando concidadãos nacionais e europeus [que nos sustentam há décadas], deveria haver um "direito natural" a pena de prisão efectiva, a partir do momento que se conclua que esse dinheiro vai ser pago por aqueles que cá estão e também plos que estão para nascer e também vão ter de o pagar durante muitos anos. Até deveria haver um crime de fraude eleitoral baseado nos mesmos princípios.

Adriano Volframista disse...

Caro Tavares Moreira
É, realmente, uma tragédia a "Estabilidade".
É-o porque, une parceiros improváveis.
Une os indefectíveis dos incumbentes, aqueles que se encontram dentro do bunker em que se transformou o governo; une os "grandes eleitores", (os interesses "especiais" -ou não- que partilham o poder com o governo, com a AR e com outras entidades) que não encontraram uma solução alternativa para a crise; une os funcionários públicos e uma parte dos reformados que julgam encontrar nos incumbentes, a garantia que, pelo menos, não perderão tudo; une os do lado da oposição para quem o actual líder não lhes agrada; pelo que mais uma volta da nora, pode ser que caiba em sorte ao seu (deles) alcatruz. Une a (outra) oposição, em especial a que, - ao substituir, o trabalho de base e a apresentação de ideias alternativas, pelo GPS (avariado) das sondagens e dos sound bites colocados pela máquina do governo- encontra na "estabilidade" o alibi para a apatia que o medo provoca. Une os cidadãos dos 20-30 anos a quem lhes retiraram o futuro,lhes anestesiaram (com, algum bem estar e consumismo de pacotilha), a vontade de mudar e, por isso têm medo deles, da própria sombra e da mudança, fornecendo a prática desculpa de poder mergulhar na indiferença cívica.
Todos nós, com a "estabilidade" de uma forma ou de outras evitamos o problema e, porque é uma tragédia, iremos despertar violentamente com uma convulsão social grave.
Não nos podemos queixar que não fomos avisados; quando um homem como Mário Mendes sai do seu silêncio e avisa de um perigo eminente de convulsão social, devíamos tomar mais atenção.
Tem toda a razão, estabilidade é uma tragédia.
Cumprimentos
joão

Tavares Moreira disse...

Caro Gonçalo Correia,

Anoto seu desabafo, perfeitamente compreensível, de resto, face ao desabar de uma economia violentada pelo peso do Estado!

Caro F. Almeida,

O excelente é claramente generosidade sua - aliás em dose dupla, se considerarmos a manifestação de tolerância pela minha ousada incursão pelo mundo do Direito Civil!

Essa do direito natural a pena de prisão efectiva tem piada, caro Flash Gordo!
Mas repare que os Tribunais já estão enxameados de processos que se arrastam ao longo dos anos...acha que ir por aí seria solução, entupindo ainda mais os Palácios de Justiça?

Caro João,

Terá reparado que a tese do Post não consiste propriamente em qualificar a Estabilidade como tragédia - mas antes de a equiparar a Estabilidade ao conceito de obrigação natural segundo Oppo...
Isto é, de os benefícios desta Estabilidade só poderem ser efectivamente percebidos a partir do seu óbito...
Enquanto persistir, profundamente desejada pelo Povo segundo os Incumbentes tal como Kadafi na Líbia, esta Estabilidade vai corroendo o tecido económico e social até ao seu completo perecimento!