Dizia-me há dias uma técnica qualificada do Estado, que exerçe funções num organismo de fiscalização de legalidade financeira, que não se atreveria hoje a exercer funções com responsabilidade de decisão no sector público. Fiquei admirada porque sempre pensei que seria uma excelente dirigente caso assumisse tais funções e que, conhecedora dos meandros legislativos e regras financeiras, estaria particularmente apta a desempenhar um cargo de responsabilidade.Respondeu-me que a facilidade com que se é acusado do que é grave ou do que não tem significado nenhum, a dificuldade em defender-se perante a incerteza de interpretações e o nulo reconhecimento de um trabalho competente são, a seu ver, razões suficientes para nem sequer precisar de invocar o fraco estímulo económico associado a uma mudança de funções dessa natureza. Quando a conheci, há pouco mais de dez anos, era uma jovem cheia de energia, que discutia ao detalhe o rigor dos diplomas legais em preparação, trabalhava imenso e nunca a vi desistir mesmo quando já apetecia ir para casa e não pensar mais no assunto que nos preocupava. Achei-a envelhecida, com amargura nas suas palavras, talvez a pensar que assim se gasta uma vida e o fulgor a analisar o que outros fazem, criticando, apontando erros, propondo multas ou acertos quando o que sonhava era fazer melhor. Custou-me ouvi-la dizer que não vale a pena.
17 comentários:
Cara Suzana, não vejo o porquê do seu espanto e da sua admiração. Há anos que assim é e é, aliás, reflexo da própria cultura Portuguesa que o Dr. Victor Bento tão bem descreveu há uns anos num post chamado "Síndrome da Sebe" publicado no blog SEDES. Penso, aliás, que é algo que tem vindo a agravar-se a reboque dos governos governarem para a rua e a toque de gritaria e não em prol do bem para o país e para os Portugueses.
Dando-lhe o meu exemplo pessoal, desenvolvi a minha carreira toda em transportes, sempre trabalhando no estrangeiro e hoje em dia estou retirado. Garanto-lhe que jamais em dias da vida aceitaria fosse que cargo fosse numa empresa pública de transportes em Portugal ou no IMTT ou coisa parecida. É que para além do que a sua amiga lhe disse, em Portugal essas posições têm ainda outro contra: é-se capacho de politicos o que é uma posição muito ingrata. Por tudo junto é que sim, cara Suzana, é normalissimo o que a sua amiga, com as qualidades que lhe aponta, lhe disse tal como é normal o reverso da medalha, ou seja, para esses lugares vai o refugo, os inuteis que nunca fizeram nada na vida e não têm remédio senão sujeitar-se a esses enxovalhos. Uma pessoa com as qualidades que aponta à sua amiga terá certamente coisas mais uteis que fazer na vida.
Onde eu vejo mais amargura nas palavras que traduzem o sentimento da sua amiga, cara Drª Suzana, é precisamente no pequeno trecho que transcrevo: "...a dificuldade em defender-se perante a incerteza de interpretações e o nulo reconhecimento de um trabalho competente..." colocando especial ênfase na segunda parte do mesmo.
«Tudo vale sempre a pena. Se a alma não é pequena» dizia Pessoa no seu poema "Mar Portuguez". Mas a alma, para não ser pequena, precisa que a deixem crescer, que não a acorrentem, que não lhe coloquem grilhões. E infelizmente, esta era que vivemos está a revelar-se favorável ao florescimento daqueles que são adeptos do impasse, da burocratização, da complicação. E o mais grave que eu noto, é que este sentimento, esta forma de gerir e de organizar, de viver, afinal, está a estender-se ao ambiente famíliar e social, fazendo com que, o sentimento expresso pela sua amiga, seja comum a muitos outros desiludidos; não própriamente da vida em si, mas da forma como ela está a ser usada, ou talvez, desperdiçada, sem espaço para a iniciativa e a criatividade. A fazer-nos recordar a melancolia do poema de Pessoa,
"Não digas nada!"
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
Tempos houve em que não compreendia atitudes como a da sua amiga, Suzana. Neste tempo não tenho como não compreender.
Tem toda a razão a sua amiga. Nos tempos que correm, não há a mínima possibilidade de alguém se defender de acusações, graves ou sem significado, ou perante a incerteza de interpretações, como diz a sua amiga.
Qualquer acusação encontra de imediato eco na comunicação social e o sujeito é liminarmente posto na fogueira. Os tribunais também ajudam à festa, com interpretações por vezes mirabolantes da lei. Ainda há tempos participei num simpósio em que um jurista apresentava casos em que tal acontecia, concluindo pela incerteza que hoje existe quanto ao desfecho em condenação grave ou absolvição pura e simples.
E perguntava no final: qual a conclusão deste caso? E respondia: face à lei, será uma e óbvia; face à conjuntura em que vivemos, depende do juíz.
;)
Pois... Dr. Pinho Cardão, o ex-Bastonário da Ordem, o Dr. Marinho Pinto, dizia que a conclusão dependia da possibilidade económica do arguido, para poder contratar um bom advogado e ir intrepondo recursos até que os casos prescrevessem...
Nada disso, caro Bartolomeu. Questões graves existem no funcionamento da justiça e não podem ser afuniladas dessa maneira.
aquela coisa horrorosa a que chamam 25.iv acabou com o rectângulo
todos os imbecis quiseram passar por cima de quem sempre foi anarca, agnóstico, pedreiro-livre dos tempos honestos do GOL
com a burra que montava minha infância aprendi a fazer 'cangocha' e a 'despejar' o lixo humano para bem longe
a nossa periferia é cultural e cívica.
não tem conserto
Permita-me que lhe responda, fazendo uso novamente, das palavras do ex-Bastonário, caro Dr. Pinho Cardão.
«A justiça em Portugal, tem uma entrada e várias saídas»
Esta conclusão remete-nos direitinhos para um afunilamento... ao contrário, bem entendido.
Caro Bartlomeu:
Nem o papa é infalível, quanto mais o bastonário. Aliás, dizem os colegas dele, só pouca coisa do que diz é que se escreve e fica.
Cara Suzana Toscano, também eu, hoje, mais de trinta e cinco anos depois de ter escolhido ser servidor público, sinto que a administração da coisa pública está praticamente descaracterizada. Se olharmos ao que sempre foi durante pelo menos os anos oitenta e noventa do século vinte a dignidade dos quadros de topo dos ministérios e o compararmos com o que é desde há mais de uma década a menorização dos quadros de carreira relativamente ao conjunto de assessores, muitos deles jovens e sem qualquer experiência de nota, que vão enxameando gabinetes ministeriais, temos aqui o caldo de (in)cultura organizacional que tem feito com que muitos daqueles que fizeram a sua carreira se sintam completamente desmobilizados para continuarem a oferecer as suas capacidades e vontade ao serviço de um Estado que os desprestigia e vilipendia. Nem vale a pena dizer aqui o que é o meu caso. Isso fica para quando nos encontrarmos por aí numa qualquer eventualidade. Até sempre, cara Suzana.
Car Dr. Pinho Cardão, lamento que o meu comentário o tenha levado a pensar que idolatro o ex-Bastonário da Ordem dos Advogados.
Citei as frases que ele proferiu, por uma mera questão de modéstia e de reconhecimento da minha incapacidade para tecer conclusões mais acertadas que as dele.
Afinal, o "homem" é do meio, estava empossado de um cargo público de enorme responsabilidade que não lhe permitia proferir em público acusações, ou desenvolver raciocínios erroneos.
Penso eu de que...
Cara Dra. Suzana Toscano,
Numa “situação normal”, o convite para o exercício de funções públicas representa, por si próprio, o reconhecimento da singularidade da pessoa convidada; daí os convites começarem por: - “Tenho a honra de convidar V. Exa…”. Portanto dispensam-se outros reconhecimentos, quem é convidado deve aceitar desde que julgue possuir honestamente as qualidades exigíveis para o cargo, ponderadas naturalmente questões remuneratórias e pessoais. Contudo, vivemos algumas circunstâncias de anormalidade completa, pondo de lado eufemismos, as pessoas quantificam-se pelo número de cabeças, mas só os cabeçudos são elegíveis, de modo que a sua amiga faz muito bem, as dores de cabeça, presumo, são proporcionais ao tamanho da mesma…
Corremos o risco de cristalizar, mas que fazer quando todos marcham no mesmo sentido!?
;)
Apenas para confirmar o que a Suzana Toscano escreveu. Dentro das pessoas competentes e rigorosas não existe nenhuma apetência por cargos de direcção, ao contrário do passado. Dos contactos que tenho tido penso que essa situação é generalizada na administração pública. A incompetência e o conúbio político são uma constante. Existem organizações onde a cor partidária vai até à mais baixa escala das chefias. Simples coordenadores jogam os seus trunfos nessa guerra. Os concursos para dirigentes são uma fantochada para enganar o povão.Os júris são constituídos por dois altos dirigentes dos serviços e um indivíduo enviado pela universidades que faz o frete. Trata-se de uma escolha e não de um concurso por mérito. A situação anterior era muito mais transparente: os cargos dirigentes eram efectuados por escolha sem concurso.
Eis um tema que deve, urgentemente, ser sujeito a uma séria reflexão. Muita preocupação, e justificada, pelo objetivo de menos Estado onde ele não faz falta alguma. Mas pouca, muito pouca no que respeita a um mlehor Estado, a uma melhor Administração, de onde se afasta os melhores.
Caro Zuricher, fui ler o texto do Vitor Bento, está muito bom, mas receio que o mal actual seja ainda mais grave, resulta a meu ver da total desvalorização do trabalho competente a favor de pequenas e mesquinhas glórias do momento. Destroem-se ou ignoram-se pessoas a troco de um fogacho de quem já ninguém se lembra no dia seguinte, sobram picardias ridículas ou descrédito sobre grupos inteiros e não há função mais cobiçada que a de fiscal ou denunciador, tantas vezes envernizado de investigador. Receio bem que venhamos a ter boas razões para considerar que não se conseguiu fazer nada de melhor do Estado que temos, não será é pelo sempre apregoado "falhanço das medidas" mas sim pela desistência de muitos dos que podiam dar consistência e brilho às funções que deveríamos preservar. Não há reformas que sobrevivam à ausência de competências e dedicação, em lado nenhum que eu saiba, seja serviço público sejam empresas. Obrigada a todos pelos comentários que este assunto vos mereceu. É isso mesmo, caro Zé Mário, bela síntese.
Caro José Correia este é ponto de encontro onde temos muito gosto em o encontrar, volte sempre!
Suzana
Não há nenhuma organização que sobreviva em clima de instabilidade permanente e debaixo de um clima de imprevisibilidade sobre o seu destino.
Em tempos de dificuldades que uma gestão cuidada das expectativas torna-se ainda mais necessária. Faltam medidas para valorizar as pessoas e as instituições, para motivar e reconhecer o mérito.
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