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sábado, 29 de junho de 2013

"Noite de verão"...


Procuro as noites quentes de verão, sobretudo as que são embelezadas pelas brisas suaves e doces, que sabem correr de forma invisível sobre as águas paradas da ribeira, roçando-as, afagando-as com uma volúpia fácil de imaginar. Deve ser a época de acasalamento entre o ar e a água. Em frente, o vazio de um belo espaço, centrado pelo pelourinho, símbolo da autoridade municipal. Uma coluna "retorcida" terminada numa pequena esfera armilar de metal. Não se pode dizer que seja uma preciosidade arquitetónica se a compararmos com outros pelourinhos das redondezas. Não interessa, conheço-o desde que comecei a  lembrar-me de mim. É o suficiente. Corri e saltei em seu redor, sentei-me nos seus "degraus" e senti o calor das pedras quentes à noite, um estranho calor reconfortante que ele sabe devolver ao fim de um dia de verão. Viu-me crescer e vê-me a envelhecer, sempre em silêncio. Guarda tantas memórias, tantas, que encheria quilómetros de lembranças com almas conhecidas e desconhecidas. Elas navegam em seu redor seguindo os veios da pedra, saltam, correm e descansam nos seus degraus. Uma espécie de altar da memória individual e coletiva, onde se pode prestar culto.
Lembro-me de há muitos anos ter visto uma peculiar personagem que corria por estas bandas a ajoelhar-se com os braços abertos a fingir uma cruz. Cabelos compridos a caírem sobre os ombros, numa mistura de branco, cinzento e castanho, quase sempre molhados, não sei se de água, brilhantina ou de suor. A fácies, barbuda, a imitar o cabelo, transmitia um ar estranho, bíblico, pobre, apatetado mesmo, não se vislumbrando se era assim de nascença ou se foi adquirido. Sempre de casaco e de gravata, montava uma velha pasteleira em que sobressaía uma enorme buzina que utilizava amiúde. Pedalava com determinação com o seu ar meio aristocrático e meio decadente. Uma estranha combinação que provocava simpatia e interrogação sobre quem seria. Não se metia com ninguém. Evitava as pessoas como os animais quando são mal tratados pelos humanos. Cruzei-me vezes sem conta com ele, aguçando a minha curiosidade. Deixei que o tempo passasse porque acaba sempre por me segredar coisas, coisas que às vezes nem queria saber. Nesse dia vi-o a aproximar-se do pelourinho. Desmontou da  bicicleta, com a qual conseguia transportar coisas impensáveis, quer em géneros quer em volumes, e ajoelhou-se, abrindo os braços em cruz. Levantou a cabeça e rezou apaixonadamente com um ardor difícil de traduzir. Na esplanada ouviu-se uma explosão de hilaridade. Eu fiquei a olhá-lo com admiração e ternura. Confundiu o pelourinho com uma cruz? Deve ter sido essa a explicação para as gargalhadas e chacota. Talvez, pode ter sido, mas quem sabe se não terá sido uma forma de culto às almas que giram em seu redor, às suas lembranças, às minhas e às de muitos outros.
Passado algum tempo, encontrei-o ao fim de um dia de campanha. A noite tinha acabado de cair. Num recanto afastado, sem luz, junto à sua bicicleta e a um atrelado amontoava coisas e mais coisas com um cuidado perfeccionista. Cumprimentei-o. Retraiu-se, afastou-se desconfiado. Não disse nada. Tentei comunicar com calma para poder ganhar alguma confiança. Falou muito pouco, tinha um défice cognitivo mais do que evidente. Mais do que esperaria. Não o incomodei. Não tinha esse direito. Desejei-lhe novamente boa noite e estendi-lhe a mão. Assustou-se e deu um passo para trás. Fiquei algum tempo de mão estendida. Olhou-me. Ao fim de algum tempo desisti. Senti um estranho incómodo por manter aquela posição, num espaço escuro, triste e sem condições nenhumas, perante um pobre ser.  Quando comecei a afastar-me estendeu nervosamente a sua mão. Apertei-a e desejei-lhe boa noite. Sorriu.
Passado algum tempo soube que tinha morrido no seu casebre durante a noite. O fogo consumiu tudo, a bicicleta, o atrelado, as suas "coisas" e ele.
A primeira reação que tive foi, "nunca mais vou vê-lo a rezar, de braços abertos, em cruz, junto ao pelourinho".
Já ninguém se deve lembrar dele. Eu lembro-me. Bastou-me olhar para a coluna de pedra encimada por uma pequena esfera armilar de metal. A pedra liberta um generoso e estranho calor.
Acabei de lhe tocar...

3 comentários:

Bartolomeu disse...

A maioria de nós, habituou-se a valorizar muito pouco, ou nada, matérias do foro sentimental.
Deve ser por isso que textos como este, nos prendem a atenção e produzem a quem os lê, enquanto os lê, a sensação de se achar num lugar indefinido, em suspensão; entre o chão e outro algo que não se sabe o que é, nem se sabe ao certo onde está, ou se existe.
Alma, todos possuímos; excepto os desalmados. Mas até esses sentem e provávelmente emocionam-se, como se emocionava aquele homem que na praia, ouvindo o rebentar da onda e espraiando o olhar até ao horizonte, deixava que os seus pés enterrados na areia, recebessem a energia mediúnica que o transformava no intermediário entre os homens e o espírito.
Intermediário entre os homens e o espírito.
;)

Emmanuel disse...

God is love!

Catholic blogwalking

http://emmanuel959180.blogspot.in/

Suzana Toscano disse...

O caro Bartolomeu tem razão, estes textos tiram-nos da nossa realidade e trazem um suplemento de alma, ficam a dançar na nossa cabeça até acabarmos de saborear.