O sector automóvel tem sido dos mais duramente atingidos pela crise, com quebras brutais nas vendas a nível global. Naturalmente, ninguém esperaria que a AutoEuropa pudesse escapar ao impacto da crise: vai longe o período entre 1997 e 2002 em que a produção superou, em média, 130 mil unidades anuais, estimando-se uma produção de cerca de 80 mil veículos em 2009. E, perante esta realidade, a Administração da empresa instalada em Palmela propôs à Comissão de Trabalhadores a manutenção de todos os postos de trabalho mediante a utilização do conceito de “banco de horas”, que implica trabalhar ao sábado sem pagamento extraordinário para trabalhadores com menos de 208 dias anuais – sendo que, para os restantes, o sábado continua a ser remunerado como trabalho extraordinário.
Para grande surpresa minha, a Comissão de Trabalhadores recusou. E, no momento em que escrevo, as negociações continuam suspensas, embora tenha já sido admitido pelas duas partes a possibilidade de ainda se poder chegar a um acordo.
A minha surpresa perante esta situação reside no facto de a AutoEuropa ter sido, pelo menos até agora, um exemplo em matéria de acordos de empresa. O que me levou, em escritos passados, a elogiar quer a Administração, quer a Comissão de Trabalhadores – sobretudo estes que, até agora, tinham, em minha opinião, mostrado um bom senso e realismo absolutamente raros (em Portugal), face à globalização da economia e à cada vez maior facilidade com que as localizações das unidades produtivas são alteradas. O que, em minha opinião, foi decisivo para que a unidade de Palmela pudesse ser considerada uma das melhores do universo Volkswagen (VW), e para que novos modelos tenham sido canalizados para produção em Portugal, afastando o cenário (trágico) da deslocalização da fábrica para outras paragens.
Ora, por mais que a proposta agora apresentada pela Administração implique algum sacrifício para os trabalhadores – e implica –, ela não me parece constituir nada de extraordinário, para mais na dificílima conjuntura que atravessamos, em que todos os dias ouvimos notícias de empresas a fechar e do desemprego a aumentar, quer no país, quer a nível internacional. E a sua não-aceitação implicará, como a Administração da AutoEuropa já referiu, a dispensa de cerca de 250 trabalhadores contratados a prazo e alguns efectivos até ao fim de 2009.
O meu espanto foi ainda maior porque, pouco antes de se ter chegado ao impasse em Palmela, a VW anunciou a produção de um novo carro na sua fábrica de Bratislava na Eslováquia, ao mesmo tempo que o chairman do Grupo afirmava que a equipa a laborar naquele país estava preparada com a flexibilidade necessária para receber as novas encomendas… Não terão os trabalhadores da AutoEuropa percebido o aviso?... É que a flexibilidade laboral é um conceito absolutamente interiorizado noutras paragens, como a Europa Central e de Leste (de que a Eslováquia é um bom exemplo). Flexibilidade funcional, horária e mesmo geográfica. Já por cá… apetece perguntar: não é melhor passar a trabalhar ao sábado sem remuneração adicional (o que só se aplica a quem tem menos de 208 dias de trabalho anuais) e garantir os empregos existentes?…
É preciso perceber que estamos a falar de uma empresa que pertence ao top 3 das exportações nacionais, e que é responsável por cerca de 9 mil postos de trabalho (3 mil directos, na própria fábrica, e 6 mil de empresas que fabricam componentes para automóveis). O que significa que o seu eventual encerramento seria catastrófico para economia portuguesa, e colocaria em xeque a existência de um cluster industrial (o automóvel) que utiliza muita tecnologia de ponta (criando, por isso, relativamente, mais valor) e é responsável por cerca de 11% das exportações (dos quais uma parte substancial provém da AutoEuropa). Ou seja, é também por razões estruturais (para além das conjunturais evidentes) que seria muitíssimo importante evitar este cenário – no que os trabalhadores têm uma palavra fundamental. Porque nem creio que, aqui e agora, o Governo possa fazer mais do que já fez (ajudou a indústria de componentes automóveis com o plano de apoio ao sector, o que também é importante para a AutoEuropa, que só é competitiva com uma cadeia de fornecimento em Portugal).
Mesmo sem crise, já a globalização da economia não se compadeceria com a inflexibilidade mostrada pelos trabalhadores da fábrica de Palmela… imagine-se, agora, os danos colaterais na conjuntura de dificuldades que atravessamos!... Quando a prioridade das prioridades devia ser salvar os empregos (sobretudo num dos sectores mais expostos à crise, como o automóvel), a Comissão de Trabalhadores da AutoEuropa resolve prender-se por… detalhes e não revelar um bom senso que, nesta altura, mais do que em qualquer outra, seria fundamental. Até porque, mesmo que agora se chegue a um acordo (e oxalá que sim), o mal em termos de imagem (para a empresa-mãe) já está feito… Com que danos, é o que falta perceber. Mas arrisco concluir que, infelizmente (e oxalá que não…), as probabilidades de manutenção da AutoEuropa em Portugal parecem já ter sido bem mais elevadas…
Nota: Este texto foi publicado no jornal Sol em Maio 29, 2009.
1 comentário:
Caro Miguel Frasquilho,
Quando tenta demonstrar que em Portugal falta flexibilidade horária, funcional e geográfica julgo que não o consegue fazer de forma alguma. Existe algum país europeu com mão-de-obra mais flexível que a portuguesa? Não me parece.
O mundo real é muito diferente do mundo tratado em Lei. Hoje, em Portugal os trabalhadores mais qualificados têm emigrado por uma razão muito simples: existe flexibilidade em excesso! Todos os que trabalhamos nas empresas privadas já percebemos há muito que a eterna péssima gestão da grande maioria dos "gestores" portugueses leva a que saibamos as horas de entrada na empresa mas não conheçamos as horas verdadeiras de saída. Quantas vezes todos os que trabalhamos nas empresas privadas não recebemos um recado que dentro de 24 horas temos que estar em Madrid, ou Luanda? E quantas vezes por períodos de tempo superiores a duas semanas?
Se não fosse a lendária flexibilidade da mão-de-obra portuguesa eu gostava de saber que empresas ainda existiriam em Portugal com a generalizada "gestão" de mercearia que temos! Quem consegue evitar que a falta de planeamento e organização da grande maioria das empresas as leve à falência têm sido os seus trabalhadores.
Daquilo que me tem sido possível observar, no dia em que a produtividade for medida, não com o horário legal mas, com o verdadeiro horário de trabalho teremos um enorme desgosto e provavelmente perceberemos melhor a dimensão do nosso problema.
Quanto à fábrica de Palmela, há quantos anos se anda a pedir sacrifícios aos trabalhadores? Um dia, como se está a observar, até os trabalhadores mais colaborativos dirão: BASTA!
E um dia, digo eu, os portugueses dirão: BASTA!
NOTA: respeito muito as suas opiniões, no entanto nesta matéria julgo que talvez esteja a misturar problemas estruturais com problemas conjunturais. A saída desta empresa é inevitável há muitos anos e não é por culpa da inflexibilidade dos seus trabalhadores com se pôde comprovar ao longo destes últimos 6 anos.
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