Há palavras que entraram no nosso léxico sem que cuidemos devidamente no seu sentido, e isso tem sido especialmente sensível na divulgação de estudos, análises ou comentários que não se destinam ao público em geral e que usam uma linguagem adequada ao destinatário, seja decisor seja estudioso das matérias. A confusão desta “democratização” do palavreado que até há pouco era, por assim dizer, selectivo, tem causado não poucos dissabores, confusões, pânico ou falsas esperanças.No campo da economia, por exemplo, veja-se a trapalhada entre taxas, “cortes”, impostos, “reduções”, tsu’s, “médias”, tudo traduzido em “roubo” ou em austeridade sem que se lhe entenda outra lógica, ou “equidade” que é traduzido em “paguem os outros”, tudo badalado até à exaustão por uma comunicação social que ou não está bem preparada ou aposta no equívoco e prefere que cada um pense o que quiser. Diga-se de passagem que também essa falta de rigor técnico de quem ouve, ou de quem divulga, é muitas vezes utilizada pelos políticos, que dizem uma coisa sabendo perfeitamente que vai ser entendida outra, não se importando de ser chamados de mentirosos porque a seu tempo tratarão de dar lições de semântica, quando já ninguém estiver interessado em ter aulas de realidades técnicas. Também no campo da Justiça, por exemplo, passámos a tratar por tu o termo de identidade e residência, que traduzimos por prisão domiciliária, o arguido que é um condenado à espera da sentença, o inquérito preliminar que é de certeza a prova de culpa, a pena suspensa que passou a ser uma espécie de perdão administrativo ou a prescrição uma batota dos espertinhos. No meio de tanta ignorância abusivamente explorada para fins múltiplos, ainda me admira muito que pareceres técnicos sobre matérias muito sensíveis cheguem ao público sem qualquer filtro, assim atiradas na net ou às redacções dos jornais sem prever o que lhes acontecerá. Serão isoladas palavras com potencial de “choque”, seguem-se entrevistas a pessoas chocadas, que geram compaixão e revolta, não interessa o mal que causam, o pânico, o terror, culpa-se depois os políticos ou faz-se um ar inocente para acabar com a gritaria “esclarecendo” o que já não tem forma de ser esclarecido. Aconteceu hoje, uma vez mais, com o Parecer da Comissão de Ética sobre "Um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos” onde o uso das palavras e o seu sentido preciso ao longo de um elaborado raciocínio não contou com esta prática comunicacional tão generalizada e a inevitável torrente de emoções desencadeadas pela “notícia”. Não é o Parecer técnico que tem que ser criticado por as pessoas o não terem entendido, nem quem recebe as mensagens e reage, é mesmo o “meio de comunicação” que não veicula, que intermedeia mal e transforma em problema o que podia muito bem ser uma via para a solução. No fim, esgotado o filão noticioso do momento, sobram o descrédito, o medo ou o desânimo, que ficarão muito tempo a minar as vidas dos que não podiam ter entendido.
3 comentários:
Cara Suzana, interessante post que nos traz e sobre um tema que me é muito caro, a divulgação de estudos em bruto quando não mesmo «estudos».
Desde sempre fui contra a divulgação de documentos técnicos ao público em geral e isto pelo simples motivo de que o que está escrito em jargão técnico seja de que área for não é compreensivel para os demais além de que os demais também não saberão interpretar e apreender o que lêem, não têm as ferramentas para apreender o significado e impactos do que lêem. Claro que depois gera-se uma série de mal entendidos e meias verdades quando não mentiras e disparates totais na opinião publica que a ninguém aproveitam. Na minha área, transportes, é algo do mais comum da vida, enfim.
Dou um exemplo pessoal. Imaginemos que o nosso amigo Massano Cardoso escrevia um texto de 10 páginas, muito pormenorizado e técnico, sobre uma cirurgia ao coração. Eu, pela parte que me toca, não o leria. Seria pura perda de tempo porque não entenderia absolutamente nada. Agora, se o texto fosse muito sucintozinho e resumido, provavelmente meia página, isso já leria e, certamente, entenderia mais na meia página do que nas dez páginas. Isto é válido para todas as áreas do saber. Cada um sabe do que sabe e é uma ilusão supôr que todos podem ter acesso e entender tudo o que lhes põem debaixo do nariz.
É isso mesmo, caro zuricher, o pior é que ficam todos mal nesta baralhada entre cientistas, políticos e jornalistas, sobretudo quando os cientistas se armam em políticos, estes se escudam nos cinetistas e os jornalistas se armam em ambos.A opinião pública deixa de acreditar em qualquer deles e vive numa insegurança terrível porque não consegue perceber nenhum deles.
Suzana
Mas no final de mais uma "trapalhada" comunicacional num assunto de tanta delicadeza é o cidadão comum que fica assustado.
Confesso que não ouvi as televisões, pois estive fora, mas li várias notícias e não escapei ao sentimento do comum dos mortais, fiquei chocada.
A quem interessa esta leviandade comunicacional? Não li o parecer, mas é normal que sendo um parecer técnico contenha uma linguagem codificada. A sua descodificação feita na praça pública na voragem do espectáculo mediático é a todos os títulos reprovável. Mas se a comunicação social não andou bem, a entidade autora do parecer e o governo não ficam isentos de responsabilidades. Não temos emenda!
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