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sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Parto da morte

O parto da vida pode ser muito doloroso, mas é compensado pelo calor de uma nova existência, embrechada de alegria e de esperança. O parto da morte pode ser muito doloroso e tem como compensação a libertação da existência, despejada de alegria e sem esperança. 

Sei que o meu parto foi doloroso, mas encheu de felicidade e de alegria a minha mãe.

Tento procurar entre o nevoeiro dos meus primeiros tempos de existência onde é que ela estava. Não consigo vislumbrá-la com clareza, talvez a voz, doce, talvez o calor do corpo, suave, talvez a luz da alma, brilhante, talvez tudo, misturado em proporções variáveis que, com o tempo, se materializou na sua figura, ou melhor, na sua presença. Uma estranha sensação de proteção, inebriante às vezes, cáustica e certeira noutras. São tantos, tantos os episódios de vida e de cuidados que guardo, tudo caldeado em belos e coloridos frascos de compota. Tantos sabores, tantas cores, tantos episódios, tantos carinhos, tantas tareias, tantos afectos, tantas preocupações, tantas vivências.

Um dia, seduzido por uma bela caixa azul suave, de baquelite, surripiei-a, sem que desse conta, de uma gaveta onde estava escondida. Abria-a e vi uma espécie de fita, pequena, negra, esquisita, embrulhada em algodão amarelecido. Deitei fora o conteúdo e pus-me a brincar com a bela caixa. Ao ver-me com ela na mão ficou aflita, tirou-ma, abriu-a e ficou pálida. Onde é que puseste o que estava dentro da caixa? Perguntou-me muito irritada. Deitei fora, era uma coisa negra e feia, não prestava. Ai meu desgraçado, então, tu deitaste fora aquilo que me prendeu à tua vida! Eu fiquei de boca aberta, sem perceber, mas vi que deveria ser alguma coisa muito importante. Mais tarde entendi do que se tratava. Era uma recordação única, tinha-a guardado com tanto zelo e amor. E aquela mão, que na altura soube acariciar à maneira o meu traseiro, apertava agora a minha nas últimas horas de vida. Era a única parte do seu corpo que tinha ainda calor ou recebia-o. A respiração, estridulosa, anunciava o fim, intensificando-se de forma gutural e abrasiva, não para si, que há muito deixou de saber que existia. De vez em quando lançava um estranho olhar como a querer dizer algo. Às tantas não queria dizer o que quer que fosse, mas a expressão era funda, perturbadora. De súbito, fechou os olhos, continuando a sua respiração de afogada no mar da morte.
Não senti a presença de quaisquer divindades, e também não fui capaz de as invocar para que a libertassem do sofrimento.
Não sei o que senti, talvez uma serenidade incómoda, irritante mesmo. A mão que me deu a mão continuava quente num corpo em arrefecimento pelo frio do esquecimento. O cordão do parto da morte caiu-me nas mãos. Que fazer com esta recordação? Vou colocá-la numa bela caixa azul suave. Vou guardá-la na gaveta da minha imaginação, e, desta vez, ninguém vai abri-la e deitar fora o seu conteúdo. É para mim, só para mim.
Vá, pronto, já está. Descansa.
Dei-lhe um beijo na testa, o último da vida e o primeiro da morte.

Santa Comba Dão, 6 de setembro de 2012

11 comentários:

Catarina disse...

Um abraço forte.

miguel de carvalho disse...

estimado senhor massano cardoso,

por sugestão da inês, vim ler este seu texto que muito me comoveu. sem demoras maiores, porque o espaço é íntimo, venho manifestar a minha admiração ao mesmo tempo que a partilha do pesar que o momento exige, em bom nome da amizade nutrida reciprocamente com a inês. bem senti os seus "gestos de cordão" que nunca empalidecem e tradutores de uma ternura enorme, independentemente das dimensões das gavetas. sejam elas eternas como a mães. bem haja, um abraço firme, mesmo que desconhecido.
miguel de carvalho

Bartolomeu disse...

«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos simples»
Mateus, XI, 25.
É nos momentos mais dolorosos da vida, que por vezes entendemos a urgência de buscar na "fonte", aquilo que não podemos encontrar nos comentários.
Que descanse em paz.
Um grande abraço, caro Professor.

Anónimo disse...

Falham as palavras. Um abraço.

jotaC disse...

Caro Professor Massano Cardoso,

Faltam-me as palavras certas para lhe expressar o verdadeiro sentimento que me toma, pois sei, infelizmente, da dor, do vazio e da tristeza por que está a passar. Queira por isso aceitar os meus sentidos pêsames com um forte abraço solidário. Também para a família.

Tavares Moreira disse...

Caro Amigo e Professor,

Aqui vai um forte abraço de grande amizade. A beleza literária deste seu Post deixa-nos entender, pode crer, a imensa tristeza que neste dia o domina.
Experimentei sentimento semelhante, se me permite a ousadia, há quase 10 anos (com uma diferença de 10 dias) quando me despedi, em soluços incontíveis, de minha saudosa Mãe.
É um momento único nas nossas vidas, que nos leva irresistivelmente a percorrer mentalmente todo o caminho vivido até este dia.
E a forma como associa este dia ao do seu nascimento é de uma ternura surpreendente.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Querido Amigo Professor Massano Cardoso
Comoveu-me o seu texto, a forma bela como nos revela o amor pela sua Mãe. Aceite um beijo muito grande de amizade e carinho.

Pinho Cardão disse...

Caro Professor:
Um forte abraço de grande amizade, extensivo a toda a sua família.

MM disse...

Lamento imenso o sofrimento que lhe vai na alma e que tão bem expressa neste post. Os meus sentimentos,
MM

Suzana Toscano disse...

Querido amigo, guarde bem a usa caixa azul tão bem recheada de recordações e que lhe fique também o consolo de ter podido acompanhá-la até ao último momento desse "parto" tão doloroso. Um grande abraço de amizade, também para a sua mulher, filhas e netos.

Massano Cardoso disse...

Um abraço a todos, pelas palavras e ajuda. Não esqueço. Obrigado.