É
uma senhora sofrida, e tem razão. A maldita da doença
provoca-lhe sofrimento atroz e reduz-lhe a liberdade para a realização
de triviais atos, impossibilitando-a de ganhar a vida como desejaria. Luta com
denodo, cumpre rigorosamente a prescrição, conhece na carne os malditos
efeitos secundários dos fármacos
que, teimosamente, não a libertam da dor e da
incapacidade. Luta, e luta a sério. Nas nossas conversas denota uma
atitude crítica, fundamentada nos problemas
sociais e nas prioridades médicas. Habituei-me ao seu discurso.
Inicialmente considerei-o como equivalente a uma forma de despeito, mas estava
errado, tenho de confessar. A minha costela preconceituosa ainda geme e faz-me
gemer, mas acabo por aprender, e, habitualmente, com quem menos espero. Sempre
na expectativa de poder melhorar, lutou para que lhe fosse feito o tratamento
biológico no hospital. Conseguiu. Foi
aceite. Ao fim de pouco tempo começou a melhorar a olhos vistos. Senti a
emergência de uma felicidade crescente e um
nítido
relaxamento da sua crispação, que, afinal, não
era mais do que um temor de não poder melhorar, temor agora
renascido por voltar a ficar pior, já que tem a noção
de vir a ocorrer descontinuidade no tratamento. Estupefacto, disse-lhe que era
impossível. Ripostou de imediato que, face
ao preço do produto, não
tardará muito para suspenderem a sua terapêutica.
Não,
isso é impossível. Disse-lhe. Está
bem, está, senhor doutor, vai ver que um dia
destes irão suspender o produto. É
muito caro. E depois? Depois? Vai ver que tiram estes e muitos outros.
Fiquei com esta curta conversa
registada no rol das minhas preocupações. A situação
económico-financeira do país
é
uma desgraça obrigando à
tomada de medidas adequadas. No entanto, começam a surgir alguns tiques
preocupantes, como é o caso do pedido de um parecer ético
formulado por Sua Excelência o Ministro da Saúde
sobre a fundamentação ética para o financiamento de três
grupos de fármacos, a saber retrovirais para
doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos biológicos
em doentes com artrite reumatoide O CNECV emitiu a sua opinião
que desencadeou reações acaloradas, sobretudo por parte da
Ordem dos Médicos, que, inclusive, quer saber quem
assinou o mesmo, já que há médicos envolvidos na decisão do conselho e, nessa
circunstância, potenciais alvos de processos
disciplinares.
O anterior bastonário,
que faz parte do conselho, contesta a opinião do atual dizendo que "se o
parecer foi aprovado por unanimidade, algo de estranho acontece com esta polémica".
Para realçar, comenta que o produto final, o
parecer, é fruto de 21 conselheiros, "do
Bloco de Esquerda ao CDS/PP"! O parecer, um exercício
intelectual, diz que "não devem ser escolhidos os melhores
medicamentos dos mais baratos, mas os mais baratos dos melhores".
Fui ler o parecer. Mas porque razão
se pede um parecer destes? Para quê? A escolha e a aplicação
de um medicamento, sobretudo os mais dispendiosos, assentam em critérios
clínicos e em princípios
de custo-efetividade. Os médicos sabem disso. Os alunos de
medicina são alertados e instruídos
durante o curso, então, qual a razão
deste pedido por parte do Ministro da Saúde. Fundamentos éticos?!
Não compreendo, sinceramente. Ninguém
anda a usar medicamentos de certas classes terapêuticas como se fossem chás
ou mezinhas caseiras. E quanto ao "racionamento" o presidente do
CNECV afirma que "é um termo que no parecer é
usado em relação aos custos e que tecnicamente é
benigno. Trata-se de otimizar recursos racionalmente". Benigno? Tenho
muitas dúvidas. Só
espero não ouvir um dia destes a Dona V. a
queixar-se de que lhe retiraram a sua medicação, que transformou radicalmente a sua
qualidade de vida, voltando à terapêutica clássica,
mais barata, mas menos eficiente. Se isso acontecer voltarei aqui. Por uma mera
questão ética, obviamente.
5 comentários:
Taxar o capital. É a solução da CGTP.
O nosso problema é capital.
Liquidez, dinheiro para a economia...
Em vez de o atrairmos, porque precisamos dele, vamos taxa-lo. Mais do que antes?
Aí, será o fim. De pouco dinheiro passaremos a dinheiro nenhum.
Propostas de malta que já não vive neste mundo...
A demagogia impera e pode vencer nestes momentos difíceis.
Vamos amarrar um peso aos pés de um mau nadador em mar alto. Adeus.
As coisas estão difíceis. Tanto gostamos dos novos grandes LCDs nas salas, dos portáteis, smartphones, máquinas de filmar e fotográficas a custo da uva mijona. Não percindimos dos nossos carros e das viagens de férias ao Brasil. Consumimos externo a baixos custos. A crédito.
Tanto consumimos externo que o produto interno mirrou. O trabalho deslocalizou-se. Com ele, lá foi a riqueza. Agora, menos ricos e com uma grande dívida, não temos saída.
O capital vai pagar?
Vai é pisgar-se.
O "estudo", pelo que se observa há muito no rectângulo, tem habitualmente uma função pouco edificante:
Serve para retirar a "responsabilidade" a quem decide ou é responsavel pelo serviço.
Para justificar o injustificavel, ou mai habitualmente evitar que o responsavel assuma a realidade.
Somos assim, razão porque chegámos ao que chegámos.
Falidos.
Caro Massano Cardoso, há muito que algumas palavras perderam o sentido benigno ou o rigor técnico, sobra o medo, a desconfiança e a certeza de que as decisões serão tomadas pela força das circunstâncias, talvez embrulhadas em estudos, com sorte apoiadas nos estudos, com muita sorte atendendo aos estudos e às suas cautelas e recomendaçãoes.
Suzana
Sim. Eu também tenho medo, medo de que muita gente deixe de ter "sorte". Para mim, desde sempre que associo a palavra sorte à lotaria, talvez por em pequeno ouvir semanalmente "a sorte grande". Não jogo, habitualmente, talvez alguma cautela, mas tem de haver razões especificas (outras histórias :) ). Vejo, dadas as circunstâncias, que as mesmas vão ditar a sorte de doentes, por isso julgo que é preciso ter cautela. No meio desta questão toda só tenho uma pergunta para fazer e uma resposta que não me convenceu, por que razão um ministro da saúde faz um pedido destes? E porque razão um conselho de ética dá uma resposta destas? Todos as questões são do conhecimento dos profissionais e fazem parte da sua prática. Assusta-me.
Sem capital e trabalho a economia não cresce. Capital e trabalho sabem que ambos são necessários. Mas a história não acaba aqui. Continua na divisão da riqueza. Capital e trabalho querem aumentar a sua parte na divisão da riqueza. Desde os anos 70 o capital tem cilindrado o trabalho neste desígnio. Um dos cavalos de batalha recentemente usados é a insustentabilidade do estado social - resumindo, educação, saúde e segurança social públicas. Na realidade o capital não é contra o estado. É contra o social. O capital quer que as pessoas que têm dinheiro façam despesas privadas e que as pessoas que não têm dinheiro não tenham saúde, nem educação, nem segurança públicas, mas quer que o estado garanta a segurança do património. Portanto, sim, se deixarmos, todo o estado social vai ser racionado.
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