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sábado, 2 de maio de 2009

Dois olhos azuis e um aprendiz de barbeiro...

Tinha ultrapassado os setenta anos não há muito, mas, mesmo assim, a pele, lisa e muito branca, não acusava o desgaste do tempo, nem tão pouco da doença que há mais de vinte anos vinha a miná-la. Ultimamente o coração começou a claudicar e, após o episódio da hospitalização, tornou-se quase impossível controlar a diabetes. Acatava os conselhos e tomava a medicação com uma religiosidade sem limites. Mas nada. Houve necessidade de começar com terapêuticas mais poderosas. Aceitou com naturalidade e com o desejo de poder fruir apenas uma qualidade de vida mínima, não queria viver muito, mas apenas com dignidade. Olhava para mim com um sorriso suave, e uma humildade encantadora jorrava dos seus lábios a pedir auxílio e compreensão. Os seus olhos pareciam, estranhamente, duas estrelas felizes, conscientes de que em breve iriam explodir mas desejosos de transmitir tranquilidade e esperança ao médico. Tínhamos acabado de criar um círculo muito estranho. A doente pedia ajuda e compreensão, e eu correspondia ao seu pedido, mas, ao mesmo tempo - penso que deveria transmitir alguma ansiedade e preocupação, porque o que emanava do seu olhar era algo difícil de descrever -, pressenti que a senhora queria tranquilizar-me. Um estranho vento de esperança e de resignação parecia querer libertar-se do lago dos seus olhos azuis. Perturbou-me. Estabelecido o elo, apercebi-me que a morte não teria forças para o romper, antes pelo contrário, quando tal acontecesse ficaria ainda mais reforçado.
Acabamos por ficar sempre ligados uns aos outros. São as recordações que nos transformam sem darmos por isso. Foi o que aconteceu. Passou a fazer parte de mim e de algo que cada vez compreendo menos.
Na mesma página, outra notícia, agora a de um jovem que se arrogou ser o deus da própria existência. Quantas vezes me cruzei com ele? Poucas, muito poucas. Há muito tempo que o não via. Quantas vezes falei com ele? Não sei se alguma vez tivemos alguma conversa, tirando a saudação. Mas recordo do dia em que, na sua condição de aprendiz de barbeiro, teve que fazer o primeiro corte de cabelo. Verde de corpo, bem penteado, educado, de poucas ou nenhumas falas, nem sei se teria acabado o 9º ano, encontrava-se ao meu lado, um pouco afastado da cadeira onde tinha acabado de sentar. O patrão, homem de baixa estatura, simpático e que fazia honras à arte, ao filosofar incessantemente sobre os mais variados temas, ia preparar-se para dar início a mais uma tosquiadela quando estacou de repente e perguntou-me: - O senhor doutor importa-se que aqui o rapaz lhe corte o cabelo? É a primeira vez que vai fazer sozinho. Mas não se preocupe, porque eu fico a ver se tudo corre bem e se houver algum azar eu intervenho. Achei piada a este pedido. Sorri e disse: - À vontade! O rapaz encheu o peito de ar, agarrou nos instrumentos e com determinação deu início ao seu primeiro corte a solo. Um verdadeiro cirurgião! No final, foi buscar o espelho para mostrar as traseiras do crânio, ritual interessante, porque assim ficamos a saber o que é que os outros veem, sobretudo os que gostam de nos ver pelas costas. Abanei a cabeça, disse que estava bem. Paguei o corte adicionado da respetiva gorjeta. O patrão, que habitualmente nunca se calava, acenou afirmativamente a cabeça dando o seu veredicto à prova rainha. Disse boa tarde e saí. Durante algum tempo, o rapaz, entretanto muito mais crescido, parece que não parava de medrar, passou a ser o anatomista capilar. Mais tarde, já não me recordo quando, deixei de frequentar aquele espaço.
Passaram-se alguns anos. Recordo este pequeno episódio, porque tive conhecimento de que acabou por cortar a si próprio o fio da vida. Fui um marco na vida profissional do jovem. Nunca conversámos. Ao mesmo tempo que cortou o fio da vida também cortou muitos dos meus fios de esperança.
Sinto cada vez mais que as interligações humanas são muito mais fortes e importantes do que imaginamos. É na morte que revemos o que é a vida e qual a importância da vida dos outros na nossa, mesmo que tenhamos tido poucas conversas ou nenhuma...

4 comentários:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Somos tocados nas nossas vidas pelas pessoas com quem nos cruzamos e que de uma ou outra forma nos fazem reagir e sentir, que nos fazem crescer mais... Sem a sua presença que sentido fariam as nossas vidas? Nenhum...

PA disse...

"....É na morte que revemos o que é a vida...."



Professor adorei ler esta frase escrita por Si.


O diálogo com a morte confere (mais) sentido à vida.

Bartolomeu disse...

«Quem se quer bem, sempre se fala»
A "palavra" está por todo o lado, foi ela que criou o universo, o mundo e o homem, por isso talvez, implica uma dinâmica, tal como o fluxo e refluxo da onda do mar.
"O universo é um espaço imensamente grande, que pode ser reduzido a duas pessoas" disse um filósofo de que não me recordo neste momento o nome. É essa dinâmica sujacente à palavra, porque transporta dentro de um universo de sensações, que faz duas pessoas aproximarem-se, criar empatias, criar inclusivamente dependências de vária ordem.
Estive para acompanhar este comentário com um "link" para uma área do «Barbeiro de Sevilha" de Rossini, mas depois de pensar melhor, optei pelos olhos azuis de sir Elton John.
http://www.youtube.com/watch?v=oul-lKr4t5I
Mas seguindo a linha de pensamento da nossa muito estimada Margarida Corêa de Aguiar, lembrei-me de uma conversa que fui tendo com a minha mulher recentemente, enquanto passeávamos pelos caminhos dos campos aqui em redor.
Reflectíamos acerca da excelência que certas pessoas evidenciam, de um modo nato, para diferentes áreas, profissionais e, ou sociais.
Isto a propósito dos resultados agrículas das sementeiras. Quando passeamos pelos campos e vamos encontrando campos semeados ou plantados, vamos notando que as plantas nuns, se apresentam mais verdes, mais viçosas doque noutros. Acção certamente do cuidado que o agricultor coloca na forma como cuida delas. Porem, este sucesso, não se fica a dever unicamente ao labor do agricultor, deve-se tambem a algo de místico, algo de indizível que fermenta dentro dessas pessoas e as faz ser diferentes, apesar de iguais.

Suzana Toscano disse...

Também selcciono a frase que a cara Pezinhos escolheu, a morte obriga-nos a olhar a memória para encontrar o espaço onde vamos prender quem nos fugiu.Mas o encontro com os olutors não depende, de facto, como aqui tão bem explica o Massano cardoso, do número de palavras trocadas, há pessoas para quem tivémos mais importência do que pensávamos e há outras que, mal nos conhecendo, nos marcaram profundamente. Tristes daqueles que passam pelos outros sem os ver, que não os vêm nem deixam qeu os vejam, porque serão poupados ao desgosto da perda mas acabarão por sentir uma grande solidão.